A utopia migrante


Meditação pré-pascal

“E aquilo
que nesse momento se revelará aos povos
surpreenderá a todos não por ser exótico,
mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto
quando terá sido o óbvio”.
(Caetano Veloso)

Ilha de Utopia (Tomás Moro)

A utopia é uma migrante de países prósperos a países pobres. Enfeitiçados pelos meios de comunicação, que fazem estimar o opressor, perdoar ao corrupto e desprezar o oprimido, assistimos a um rebaixamento do espírito utópico de um proletariado aburguesado, sindicatos burocratizados e líderes populares incorporados em máquinas administrativas de governos supostamente progressistas. Também as Igrejas se acomodaram no interior do sistema, em troca do reconhecimento de sua liberdade institucional da qual fazem pouco uso. Mas essa acomodação tem seu preço: a corrosão de seu caráter profético.

Mas o vinho novo do Reino não cabe nem acaba nos odres velhos (cf. Mt 9,17) de uma funcionalidade sistêmica. A profecia pode migrar para outros espaços e siglas. O que a Encíclica Pacem in terris, de João XXIII (1963), o Vaticano II (1962-1965) e Medellín (1968) chamaram “sinais do tempo” – a emancipação dos operários, dos países colonizados e das mulheres -, na realidade foram lutas evangélicas abandonadas nas Igrejas. Reapareceram metamorfoseadas no mundo secular, porque em seu berço eclesial não encontraram hospedagem.
Felicidade e dignidade
Podemos distinguir utopias sociais de utopias culturais. As utopias sociais têm seu ponto de gravidade no sistema econômico, visam à felicidade ou ao menos à redução da fome e da miséria. As utopias do direito natural, com seu ponto de gravidade no campo cultural jurídico dos direitos humanos, visam à dignidade, à cabeça erguida e à proteção legal de liberdade. A vida concreta é ameaçada em ambos os campos: pela fome e pelo desprezo ou, como Marx diria, na base e na superestrutura.

Daí emergem tarefas urgentes de transformação: a redistribuição dos bens de acordo com as potencialidades do planeta Terra, o reconhecimento do ”Outro” no horizonte de uma harmonia universal e a participação democrática de todos, sem privilégios de classe. O primado da dignidade humana exige a prioridade dada à libertação econômica. Entre ambos, há uma relação de meios e fins.
Algo falta – Virá que eu vi
Mas, para a utopia que articula felicidade e dignidade falta ainda algo para configurar a plenitude da vida de todos. Afastados fome e desprezo da vida humana, esta ainda está ameaçada pela apropriação privilegiada de alguns. Portanto, o bem viver precisa ser pensado para todos e, ao ser pensado para todos, necessita como terceiro elemento da justiça distributiva e redistributiva.

O terceiro elemento utópico, a justiça, nos faz lembrar, concretamente, daqueles que morreram injustiçados. O horizonte utópico inclui, ao lado de felicidade e dignidade a justiça dos injustiçados, vivos ou mortos. O Messias virá quando houver para todos lugar na mesa. Mas ele virá como memória daqueles que, castigados por fome e desprezo, caíram no túmulo do esquecimento. A justiça para todos é impensável sem a memória e a graça da ressurreição dos mortos.

A história da humanidade mostrou, que o anseio da ressurreição e a vitória sobre a morte reuniu médicos e xamãs, teólogos e filósofos numa batalha que, até hoje, não está vencida nem perdida. Ela está presente em quase todas as culturas e pode alocar-se em imaginários muito diferentes. A partir do tripé – felicidade, dignidade, continuidade da vida –, compreendemos o projeto da vida plena como justiça e esperança perigosa.
(P.S. 15.03.2011)

Nenhum comentário:

Postar um comentário