O PIRARUCU SAFADO

O banquete da floresta

José Ribamar Bessa Freire


  Pode reparar: no fundo, no fundo, por trás de qualquer safadeza, existe sempre uma dose de frescura ou, como diria o saudoso senador Fábio Lucena que se amarrava num latinorum, “nulla lascivia sine frigidarium”. Por isso, todo pirarucu safado é fresco, embora nem todo pirarucu fresco seja necessariamente safado. Já o tucunaré, quando corre na floresta, cheio de frescurite, fica metido à besta. Há quem prefira uma piranha rabuda, fresquinha e sem bucho, mas piranha assim é mais difícil de encontrar do que piranha suada, salgada e rodada.

Medalhão de Pirarucu Safado, Tucunaré Metido à Besta, Mojica de Piranha Fresquinha, Risoto de Tucumã com Banana Pacovã, Farofa de Pupunha – esses nomes tão sugestivos, maliciosos e saborosos são alguns dos pratos criados por Charufe Nasser, em mais de trinta receitas que estão no livro escrito por ela e Liduína Moura.

O livro, intitulado “Banquete de Lendas – Mitos e Sabores do Amazonas no Oráculo das Coniupuiaras”, está saindo do forno nas próximas semanas. Chachá entra com as receitas e suas histórias de vida, Liduína com as narrativas míticas, Leônide Príncipe com as fotos e esse locutor que vos fala com a apresentação (e como cobaia).

Só as formas de preparar o pirarucu são mais de dez: escondidinho, pirarucu de casaca à moda Charufe, filé do dito cujo nativo, virado de pirarucu seco, moqueca de pirarucu garantido, pirarucu caprichado, pirarucu de forno que delícia ou à milanesa com castanha do Pará e purê de banana pacovã.

Outras receitas fazem poesia com tambaqui, piranha, bodó e tucunaré. Esse último, metido à besta, é bordado com brócolis, alcaparras, cogumelo fresco e vinho branco. Tem ainda receita de bolo de pupunha, mousse de palmito, geléia de cupuaçu, pudim de açaí. Mas o forte mesmo são as receitas de peixe.

Os peixes são cantados por Liduína, que recria as encantarias das águas e o lendário amazônico, lembrando que “o peixe, pão, vida e habitante das profundezas das emoções humanas, a água, nos oferece um banquete de símbolos: está presente na astrologia, na mitologia, no nosso prato, nas conversas de pé de fogo, com mentirinhas ou lorotas de pescadores ou com a magia dos ‘kumu’, contadores de histórias, mitos e lendas que nos arrebatam com o olhar estrangeiro da descoberta de um mundo novo”.

O verbo se fez peixe

Charufe Nasser, filha de libaneses e da floresta, nasceu no seringal Príncipe, nos barrancos do rio Juruá. Essa sultana do seringal tem o lirismo e tudo aquilo que um poeta precisa para o seu ofício. Adora brincar com as palavras, com aquela sacanagem lúdica que é um convite irrecusável para o banquete da vida. Mas brinca, sobretudo, com os temperos, fazendo surpreendentes combinações com os peixes e frutas da Amazônia, demonstrando um domínio absoluto da sintaxe gastronômica. Com Chachá, o verbo se fez peixe e habitou entre nós (Babá e João, 1: 1,14).

Quando entra no forno a palavra que não é encarnada, mas empeixada - se me permitem o neologismo - carrega consigo talento, criatividade, imaginação. Chachá aprendeu os segredos da cozinha com sua avó, no barracão, observando a comida do seringueiro que tinha no peixe moqueado a grande iguaria que o libertava do trivial: jabá, corned beef e feijão enlatado. “Ainda sinto na boca o gosto do mandi salgado pela vovó” – ela diz meio século depois - lembrando as festas de aniversário no barracão, que duravam dias.

Desde pequena, Chachá observou a comida do seringueiro e brincava na casa de boneca, com sua irmã Leila, com panelinhas e fogareiros, preparando farofas imaginárias de tripas de galinha, ovos fritos e cozidos, arroz, feijão e outras iguarias. Depois, acompanhava seu avô à horta, maravilhada com os canteiros de berinjelas, maxixes, quiabos, cheiro, cebolinha, salsa, hortelã, milho, tomate, couve, pimentão e mandioca, que nos dá a farinha, sem a qual o seringueiro não vive. Foi daí, da floresta, do seringal, do barracão, que Chachá tirou sua inspiração.

Aos dezesseis anos, o velho Nasser, podre de rico, internou as duas filhas – ela e Leila – no Colégio Santa Marcelina, no Rio de Janeiro. Morrendo de saudade, ela pediu e o pai mandou, de avião, no constellation da Panair, quilos de tartaruga congelada. Chachá arrebentou: na cozinha do colégio fez um sarapatel para as freiras e trinta colegas. A madre superiora saiu miando, ficou de joelhos e rezou 5 mil jaculatórias: “Graças sejam dadas a todo o momento, ao Santíssimo e Diviníssimo Sacramento”.

Mas olhem só o que a danada da Chachá aprontou. Deixou a madre superiora de quatro, suspirando, e fugiu pra terra de seus pais, onde fez uma espécie de mestrado em culinária. Morou um ano no Líbano, “onde aprendi quase tudo o que sei de sabores e temperos”. Ao tucumã, pupunha, açaí, cupuaçu acrescentou as oliveiras, macieiras, videiras, pereiras, figueiras e outras frutas até então desconhecidas. Observou como os seus tios faziam o azeite em casa e como preparavam conservas caseiras de azeitona, nabo, pepino, rabanete.

De lá, saiu pra fazer um verdadeiro doutorado na Europa. Com os portugueses, conheceu os vários tipos de azeite e azeitonas e as formas de preparar bacalhau. Na Espanha, fez curso intensivo de paella, cujos pré-requisitos eram as disciplinas ‘calamares en su tinta’, ‘porquinho a pururuca’ e ‘tortilla de batatas com cebola’.

Daí, deixou o mundo ibérico e percorreu a Itália, olhando como as nonnas de Toscana fazem o molho de tomate. Viveu um tempo na França das manteigas, queijos, vinhos, mostardas e molhos. Finalmente, curtiu os embutidos da Alemanha, seus chucrutes, joelho de porco e strudels, antes de retornar para nós.

Chachá nos une

Chachá é isso ai: uma mistureba de índio, seringal, arigó, Líbano, várias europas, uma síntese maravilhosa do bom e do belo de tantas matrizes culturais que nos formaram como identidade regional dentro do Brasil. Ela carrega nossa história e expressa como ninguém o sentimento e o gosto dos amazônidas, resultado dessa salada híbrida.
 
Na culinária, a sultana dos seringais é imbatível e tão representativa daquilo que a gente sente e saboreia, daquilo que a gente é, quanto, na música, o maestro Cláudio Santoro, ou na poesia, Thiago de Mello e Luiz Bacellar. Todos eles, ela incluída, nos tornam universais e reforçam o orgulho do que somos: amazonenses. [...]

Essa culinária está para a Amazônia como o futebol está para o Brasil. O meu grito de gol se mistura ao do Sarney, Collor, Maluf e Renán Calheiros. É terrível admitir, mas nessa hora a gente compartilha os sentimentos com grandes pilantróides e reconhecidos crápulas. Que o diga o meu sobrinho Pão Molhado, que teve uma crise ideológica depois de morrer e renascer no sarapatel da Chachá. “Ninguém consegue ser subversivo após uma feijoada”, já nos advertia Barbosa Lima Sobrinho, do alto da experiência de seus cem anos de vida. [...]

Pirarucu grelhado com tucupi
A cozinha da Chachá, quando se mostra, aproxima o humano do divino. Ela não é afobada, não come cru, consciente de que a pressa é inimiga da refeição. Charufe Nasser, artista, debochada, lírica, sacana, poderosa, amiga, fiel, inventiva, capaz de rir de si mesma, é mais importante para a identidade da Amazônia do que ela própria suspeita, porque não só domina os temperos, mas a linguagem da culinária regional, a ponto de torná-la universal, reelaborando suas experiências de vida na Amazônia no diálogo com outras culturas.

Quem comeu o croquete de macaxeira dela, que deixa no chinelo o bolinho de bacalhau da Fabíola, de insensato coração, sabe do que estou falando. O livro de Charufe Nasser e Liduína Moura compartilha, com generosidade e sabedoria, o saber e o sabor nosso de cada dia, lembrando:

“Não podes consumir além do teu apetite. A outra metade do pão pertence a outra pessoa e deves deixar um pouco do pão para o hóspede inesperado”.

Que todo cidadão tenha o direito de degustar o pirarucu safado, o tucunaré metido a besta e - por que não? - a mojica de piranha fresquinha, saboreando aquela outra metade que Chachá nos convida, a nós, hóspedes inesperados!

[Texto na íntegra: 
Diário do Amazonas (19/06/2011) e

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