“GARDÊNIA” – Cenas de “O amor nos tempos do cólera”, de Gabriel García Márquez, no Teatro João Caetano, São Paulo

Amor sob a bandeira amarela da peste


Gardênia: El Otro Núcleo de Teatro
com Cybele Jácome e Luís Mármora
Há meses não assisto a uma peça de teatro tão impactante, como Gardênia. O espetáculo segue livremente a saga de Fermina Daza e Florentino Ariza, seu amor de juventude, suas vidas separadas por mais de cinquenta anos e o reencontro na velhice. Depois de assistir à peça, corri para a Livraria Cultura e comprei o texto-matriz de Gardênia, “O amor nos tempos do cólera”, de Gabriel García Márquez, autor dos “Cem anos de solidão” e prêmio Nobel de literatura.
O núcleo da narrativa: Florentino Ariza e Fermina Daza à procura de espaço e tempo para seu amor. Já no inverno de suas vidas descobrem que vida amorosa numa casa convencional lhes seria alheia para sempre. Criam seu espaço de viver e amar no camarote do navio Nova Fidelidade. No fim da narrativa, Samaritano, o comandante do navio, olhando para Florentino e Fermina, serenos avós numa viagem lunática (não propriamente de lua de mel!), se assustou com a suspeita tardia “de que é a vida, mais que a morte, a que não tem limites”.
Não é que a vida não tenha limites. É possível afastá-los? Os limites são os parentes, os vizinhos, os olheiros, os paparazzi, os voyeurs. O que eles dirão de nós? Por causa desta pergunta repressiva, Fermina deixou de realizar muita coisa em sua vida, coisas geniais e loucuras. Os limites também são pontes.
O navio, que transportou carga de subida até o porto de Dourada, na descida recebeu passageiros que começaram a entrar no Nova Fidelidade. Entre eles, Fermina Daza logo notou muitas caras conhecidas, algumas de amigos que, fazia poucas semanas, a haviam acompanhado em seu luto de viuvez. Às pressas, Fermina refugiou-se no camarote. Florentino a encontrou consternada: “preferia morrer a ser descoberta pelos seus numa viagem de prazer, pouco tempo depois da morte do marido”.
Florentino, então, procura o comandante Samaritano. Ao final de uma conversa sobre despesas e entradas dessas viagens, Florentino pergunta, falando por hipótese: “Seria possível fazer uma viagem direta sem carga nem passageiros, sem tocar em porto nenhum sem nada?” Samaritano, um homem esperto que soube soltar palavrão de carroceiro e que entendeu perfeitamente a “hipótese” de Florentino, não pensou duas vezes: “A única coisa que permitia saltar por cima de tudo era um caso de peste a bordo. O navio se declarava de quarentena, içava-se a bandeira amarela e se navegava numa emergência.” O comandante Samaritano tinha tido que fazê-lo várias vezes devido a casos de cólera, mas também para burlar impostos ou impedir buscas inoportunas. “Pois bem – disse Florentino – façamos isso.”

A bandeira amarela simulando o cólera permitiu a Florentino Ariza e Fermina Daza, que exatamente depois de cinquenta e três anos, sete meses e onze dias, derrubaram a fronteira do “o quê os vizinhos dirão de nós”, e se uniram para fazer um amor antes nunca experimentado, porque cada ato de amor é obra nova de arte e vida. “Era como se tivessem saltado o árduo calvário da vida conjugal, e tivessem ido sem rodeios ao grão do amor. Deixavam passar o tempo como dois velhos esposos escaldados pela vida, para lá das armadilhas da paixão.”
Na realidade, não derrubaram a fronteira do controle social. Sob o pretexto da peste empurraram as fronteiras para fora do navio, pedindo tempo e espaço sem vigias de convenções funerárias para sua travessia. E Fermina descobriu nessa viagem “que as rosas cheiravam mais que antes, que os pássaros cantavam ao amanhecer muito melhor que antes, que Deus tinha feito um peixe-boi e o pusera na praia de Tamalameque só para que a acordasse”.
Quando chegaram ao porto final, a patrulha armada queria saber que tipo de peste grassava a bordo e que possibilidades havia de novos contágios. Mas a patrulha sanitária não ficou satisfeita com as respostas do comandante Samaritano e mandou que saíssem da baía e esperassem nos pântanos, enquanto se preparavam os trâmites para que o navio ficasse de quarentena.
Samaritano tentando "pôr-se de acordo com a própria raiva", não descobria como sair da embrulhada em que se metera com a bandeira do cólera. Florentino Ariza olhou pelas janelas, o horizonte nítido, o céu de dezembro sem uma única nuvem, as águas navegáveis para sempre, e disse: “Sigamos em linha reta, reta, reta, outra vez até a Dourada”. Fermina Daza estremeceu, porque reconheceu a antiga voz iluminada pela graça do Espírito Santo. O comandante olhou Fermina e, depois, Florentino, seu domínio invencível, seu amor impávido e perguntou: “Até quando acredita o senhor que podemos continuar neste ir e vir do caralho?” Florentino Ariza tinha a resposta preparada ainda no tempo quando procurou agradar a amada com gardênias: “Toda a vida”, disse.



POST SCRIPTUM SOBRE BANDEIRAS E CAUSAS

Para não continuar por “toda a vida” em linha reta, “neste ir e vir do caralho”, protegidos dos paparazzi pela astúcia da peste simulada, mas isolados dos amigos, depois da terceira viagem, Florentino Ariza e Fermina Daza decidiram recolher a bandeira amarela. Sentiram que ser livres não significava livrar-se dos outros ou fingir luto de viuvez. Consideravam envolver seu amor em outras bandeiras. No calor da discussão de causas e bandeiras em que se mesclavam o privado e o público, Fermina e Florentino sentiram em seu amor, novamente, faíscas de paixão. Sentiram que estavam vivos e verdadeiramente livres, ainda que tarde.
Bandeira do Tawantinsuyo
Bandeira do Povo Palestinense


Bandeira do MST


Bandeira do Divino

Um comentário:

  1. Paulo,
    Que post belíssimo, cheio de poesia. Avante com as bandeiras!
    Abraços
    Luciana

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