Solidariedade sem fronteiras,
justiça
sem concessões
Após participar da abertura de
exposição sobre Candido Portinari, a presidente Dilma Rousseff foi ontem
(19.5.) a Taboão da Serra (SP) para uma visita do arcebispo emérito de São
Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns. O encontro ocorre dois dias da posse dos
integrantes da Comissão da Verdade, que irá apurar violações aos direitos
humanos de 1946 a 1988.
Dom Paulo foi o criador da Comissão
Justiça e Paz para defender presos políticos e foi um dos coordenadores, na
década de 1980, do projeto Brasil Nunca Mais, que coletou documentos sobre a
repressão durante a ditadura militar. Devido ao temor de apreensão do material
durante a ditadura, os documentos foram microfilmados e remetidos ao exterior.
Em 2011, os documentos foram repatriados.
“Dom Paulo foi abrindo caminho”,
conta dom Angélico, ao lembrar da chegada ao Instituto Médico Legal (IML) em 30
de outubro de 1979. Lá estava o corpo do operário Santo Dias da Silva – cujo
desaparecimento só não aconteceu porque sua mulher, Ana Dias, entrou à força no
carro dos policiais que o transportaram. Depois de discutir com a PM para que
libertasse os militantes presos por organizar uma greve não apoiada pelo
sindicato, o metalúrgico foi baleado nas costas diante de uma fábrica na zona
sul paulistana. “Dom Paulo saiu de casa com todos os trajes episcopais e chegou
dizendo: ‘Abram a porta. É o arcebispo de São Paulo’. Foi aonde estava o corpo
e pôs o dedo na bala, indicando o ferimento feito por um policial”, relembra o
padre Júlio Lancelotti.
Da Rua da Consolação até a Catedral
da Sé, milhares de pessoas se reuniram em protesto. “Foi um grito de dor, de
denúncia”, lembra Ana, que anos mais tarde soube que o cardeal encomendara um
caixão mais resistente para que os companheiros pudessem cumprir o desejo de
transportar o corpo de Santo pelas ruas de São Paulo. Como sua família não
aceitava sua opção pela militância, Ana contou muito com o auxílio do amigo.
“Dom Paulo foi meu pai. Pai de verdade, e não um pai ausente.”
O arcebispo articulara a criação da
Comissão Justiça e Paz, que denunciava as prisões ilegais e as torturas, dava
suporte aos familiares e pressionava os militares. A fama do refúgio protetor
criado na arquidiocese cresceu e já atraía perseguidos da Argentina, do Chile,
Paraguai e Uruguai. Os militares reclamavam da intromissão da Igreja
brasileira, e dom Paulo rebatia: “A solidariedade não tem fronteiras”.
A ditadura caminhava para o final, e
o sinal de alerta acendeu. “Consegui que o Conselho Mundial de Igrejas
financiasse o projeto, desde que eu obtivesse o aval de dom Paulo”, conta a
advogada Eni Moreira, idealizadora do Brasil Nunca Mais, para que episódios de
destruição de arquivos, como vistos em outros períodos autoritários, não se
repetissem. Entre 1979 e 1985, um grupo restrito de advogados valeu-se do
direito de retirar processos arquivados no Superior Tribunal Militar, em
Brasília, e montou um quadro sistemático da repressão promovida nos 15 anos
anteriores. “O ‘guarda-chuva’ de dom Paulo nos dava certa tranquilidade”,
admite Eni. Seis anos depois, vinha à tona o livro Brasil Nunca Mais, com relatos
dos métodos de tortura, as acusações ilegais e os crimes promovidos pelo
regime – informação que, saída de seus arquivos, nunca pôde ser contestada
pelos repressores.
Padre Júlio, da Pastoral do Povo da
Rua, relembra um episódio em que um grupo de moradores de rua estava na
iminência de passar mais uma noite fria do inverno paulistano debaixo de um
viaduto. A Prefeitura de São Paulo, então administrada por Paulo Maluf, havia
fechado um abrigo e, naquela noite, dom Paulo disse que dormiria no local
enquanto não fosse reaberto. “Eu o convidei e ele foi até o Viaduto do
Glicério, no centro de São Paulo, onde os moradores de rua estavam. E aí foi um
esparramo. Imagine só, o arcebispo embaixo de um viaduto.” Para o cardeal de
muitas causas de justiça: “A esperança não é o ópio do povo, mas o motor que
modifica o mundo.”
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