Bom senso entre deveres dos pais e direitos dos filhos


Hélio Schwartsman - Guerras de circuncisão



SÃO PAULO - Na Europa e nos EUA, jornais não cessam de debater a circuncisão. O pretexto é a decisão de uma corte alemã de considerar que a realização do procedimento por razões não médicas constitui uma forma de lesão corporal sendo, portanto, punível criminalmente. A sentença revoltou as comunidades judaica e islâmica da Alemanha.

De minha parte, como bom judeu ateu, poupei meus filhos desse cruento ritual primitivo, mas, diferentemente de certos grupos religiosos, não pretendo que minhas escolhas pessoais sejam universalizáveis.

Os militantes anticircuncisão mais aguerridos a equiparam à excisão do clitóris, mas a comparação é enganosa. A clitorectomia tem o objetivo de fazer com que a mulher não sinta prazer no ato sexual. As repercussões da circuncisão masculina são bem menos dramáticas. Assemelham-se mais a marcas de outros ritos iniciáticos como tatuagens e escarificação. Há até trabalhos sugestivos de que ela traz benefícios, como a redução do risco de câncer e DSTs.

Esses, entretanto, me parecem argumentos secundários. O que está realmente em jogo aqui é até que ponto pais podem tomar decisões em nome de seus filhos. E eu receio que, mesmo admitindo que por vezes os genitores não fazem as escolhas mais sábias, não temos outro caminho que não confiar a eles a tarefa de cuidar dos rebentos. Não dá para interferir a todo instante nessa relação com a mão pesada e impessoal do Estado.

É preferível reservar a intervenção, que pode ser legítima, para situações mais graves, nas quais a vida ou a saúde da criança estejam seriamente ameaçadas. Pais são, por razões evolutivas, os melhores guardiães para seus filhos. Ainda que pudéssemos redesenhar o mundo a partir do zero, dificilmente chegaríamos a solução melhor do que a encontrada pela natureza, que, após milhões de anos de tentativa e erro, logrou obter um equilíbrio sutil entre os interesses genéticos e individuais de cada parte.

FOLHA DE S.PAULO
30/09/2012
Para a discussão cf.:


 

‘Mensalão’: Os seis argumentos dos que acusam o STF de promover um julgamento de exceção




Críticas ao Supremo Tribunal Federal se intensificam à medida que julgamento da ação penal 470 avança para decidir futuro da antiga cúpula do PT. Ao analisar essas manifestações, a Carta Maior encontrou seis principais linhas argumentativas. São elas: 1) Pressão da grande imprensa; 2) Protagonismo da teoria do “domínio do fato”; 3) Nova interpretação do crime de lavagem de dinheiro; 4) Tratamento distinto do "mensalão tucano"; 5) Julgamento em pleno período eleitoral; 6) Preconceito contra a política e o campo popular.

Marcel Gomes*

São Paulo – À medida que avança o julgamento do chamado ‘mensalão’ no Supremo Tribunal Federal (STF), também se avolumam manifestações de intelectuais, juristas e outros nomes públicos sobre as decisões dos ministros. Nesta quarta-feira (26), uma “carta aberta ao povo brasileiro”, assinada por dezenas de personalidades, se espalha pela internet. E comentaristas como o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos já falam que o STF pode estar conduzindo um “julgamento de exceção”.

As críticas recaem sobre diversas questões que envolvem a análise do processo até aqui. Passam pelo ambiente externo ao julgamento, no qual a grande imprensa assume abertamente posição pró-punição, e chegam às teses empregadas pelos ministros nas condenações, consideradas em alguns casos como reinterpretação de posições anteriores da corte.

A Carta Maior reuniu, a seguir, as seis principais linhas argumentativas utilizadas pelos críticos do STF em artigos de jornais, entrevistas e outras manifestações públicas nas últimas semanas. Em geral, eles não tratam da inocência ou culpa dos réus, mas cobram respeito ao devido processo legal - o abrangente conceito constitucional que é uma das bases do estado democrático de direito. Confira:

1) Pressão da grande imprensa: antes do início do julgamento, o jurista Celso Antonio Bandeira de Mello já alertava para o risco de que o STF tomasse uma decisão “política” e não “técnica”, diante da enorme pressão da grande imprensa pela condenação dos réus. Conforme essa linha crítica, a corte, poderia atropelar direitos dos réus, como o duplo grau de jurisdição (o que foi negado no início do julgamento, quando se recusou o desmembramento) e o princípio do contraditório (uso de declarações à imprensa e à CPI pelos réus). Vale lembrar que em 2007, quando o STF aceitou a denúncia, o ministro Ricardo Lewandowski foi flagrado em uma conversa telefônica em que dizia que a “imprensa acuou o Supremo” e “todo mundo votou com a faca no pescoço".

2) Protagonismo da teoria do “domínio do fato”: na falta de “atos de ofício” que vinculem réus às supostas ações criminosas, os ministros – como Rosa Weber e Celso de Mello – têm se valido da teoria do “domínio do fato”, que busca fundamentar a punição de mandantes que por ventura não tenham deixado rastros. O problema é que essa teoria é de rara utilização no STF, e não costuma servir de base única para condenações, segundo o professor da USP Renato de Mello Jorge Silveira, pesquisador do assunto. Diante da ausência de provas e da fragilidade dos indícios contra o ex-ministro José Dirceu, chamado de “chefe da quadrilha” na denúncia do Ministério Público Federal, especula-se que os ministros terão de se valer dessa tese para condená-lo.

3) Nova interpretação do crime de lavagem de dinheiro: pelo entendimento pacificado até antes do “mensalão”, a materialidade da lavagem de dinheiro pressupunha ao menos duas etapas – a prática de um crime antecedente e a conduta de ocultar ou dissimular o produto oriundo do ilícito penal anterior. A entrega dos recursos provenientes dos “empréstimos fictícios” do Banco Rural foi considerada lavagem, e não exaurimento do crime antecedente de gestão fraudulenta de instituição financeira. Da mesma forma, e por apenas um voto de diferença, o saque do dinheiro na boca do caixa foi considerado lavagem, e não exaurimento do crime de corrupção. Para os advogados, esse novo entendimento superdimensionará o crime de lavagem, já que sempre que alguém cometer qualquer delito com resultados financeiros e os entregar a outro, incorrerá, automaticamente, nesta prática.

4) Tratamento distinto do "mensalão tucano": o suposto esquema de financiamento ilegal de campanhas políticas do PSDB de Minas Gerais, montado pelo publicitário Marcos Valério, aconteceu em 1998, portanto cinco antes do caso que envolve o PT. Entretanto, não há previsão de quando haverá o julgamento. O chamado “mensalão tucano” tem 15 pessoas como rés e acabou desmembrado entre STF e Justiça mineira pelo ministro Joaquim Barbosa, que, no entanto, recusou esse mesmo pedido dos advogados no caso em julgamento. O tratamento do Ministério Público Federal também foi distinto: na ação penal contra o PT, o MPF entendeu que o repasse de dinheiro para saldar dívidas de campanha configura crimes como corrupção ativa, peculato e quadrilha. Já no processo contra o PSDB, o entendimento foi de que era mero caixa dois eleitoral. Por causa disso, no caso mineiro o MPF pediu o arquivamento do inquérito contra 79 deputados e ex-deputados que receberam recursos.

5) Julgamento em pleno período eleitoral: ao decidir fazer o julgamento no período das eleições municipais, o STF tornou-se um dos protagonistas das campanhas dos adversários do PT. As decisões dos ministros têm sido amplamente divulgadas nos programas de rádio e televisão, que pretendem gerar danos à imagem de candidatos do partido sem qualquer relação com o processo do "mensalão". Os efeitos eleitorais das decisões da corte podem ser ainda mais intensos porque a maioria dos réus petistas deve ser julgada na semana anterior às eleições municipais.

6) Preconceito contra a política e o campo popular: ainda que os ministros do STF estejam fundamentando juridicamente suas decisões, conforme o princípio da ampla defesa, algumas manifestações durante o julgamento revelam “preconceito” contra os políticos, em especial os do campo popular. O cientista político Wanderley Guilherme dos Santos tratou do assunto em entrevista à Carta Maior, ao dizer que há um “discurso paralelo contra a atividade política profissional” nas falas de alguns ministros. Não é surpresa que esse discurso é o mesmo daquele da grande mídia, em que o tom acusatório sempre reverberou contra os réus do suposto "mensalão".

*Colaborou Najla Passos, de Brasília



Em entrevista à Carta Maior, o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos alerta o país sobre o perigo do julgamento do “mensalão” se transformar em um julgamento de exceção, a partir de uma reinterpretação da lei para atender a conveniência de condenar pessoas específicas. “Me chama a atenção o preconceito de alguns juízes contra a atividade política de partidos populares. Minha preocupação é quando a opinião dos magistrados coincide com a dos motoristas de táxi, que têm opiniões péssimas sobre todos os políticos".

Pay and pray – Pague e reze


 
Tribunal afirma que participação parcial na comunidade religiosa é tecnicamente impossível. Quem não pagar imposto religioso no país perde o direito a sacramentos como batismo e comunhão.




O último a sair apague a luz

 
Católicos na Alemanha têm que pagar imposto religioso se quiserem ter direito a receber os sacramentos da Igreja, como comunhão, confirmação ou funeral cristão. Nesta quarta-feira (26/09), o Tribunal Administrativo Federal alemão, uma das mais altas cortes do país, determinou que um católico que declare formalmente seu afastamento da Igreja para não pagar a contribuição mensal também perde o direito de participar de seus ritos.

O fim do processo significa uma derrota para o teólogo Hartmut Zapp, que havia declarado em cartório em 2007 que abandonava a Igreja como "instituição pública", mas reivindicava o direito de continuar participando dos ritos católicos como fiel, mesmo sem pagar o imposto eclesiástico.

Os juízes determinaram que o assunto é da alçada única da Igreja, e que tal afastamento parcial não é possível, argumentando que aqueles que "desejam voluntariamente permanecer na comunidade católica não podem exigir que o Estado restrinja o direito de autodeterminação da Igreja".

Devolvendo a bola

A forma como a Igreja vai continuar lidando com o caso de Zapp, isto é, se ela continuará aceitando-o como membro, não é, na interpretação dos magistrados, da alçada dos órgãos estatais. "A sentença significa que estamos devolvendo a bola para a discussão eclesiástica", ressaltou o juiz Werner Neumann, do tribunal sediado em Leipzig.

A decisão foi anunciada dois dias depois de um decreto da Conferência dos Bispos da Alemanha entrar em vigor, segundo o qual católicos que se recusarem a pagar a taxa perdem o direito de receber os sacramentos.

Só pagando

 O movimento de reforma católica Wir Sind Kirche ("nós somos Igreja", em tradução livre), criticou o decreto episcopal, que torna a condição de membro da Igreja explicitamente vinculada ao pagamento de impostos como um sistema de pay and pray (pague e reze).

"Eu me considero ainda como membro da Igreja Católica Romana", afirmou o teólogo Zapp de 73 anos. O presidente da Conferência dos Bispos da Alemanha, Robert Zollitsch, considerou o veredicto uma confirmação de sua linha. "A Igreja é uma comunidade de fé, que existe na Alemanha como uma instituição de direito público. Essas duas coisas não podem ser separadas", alegou.

Na Alemanha, os contribuintes são obrigados a pagar imposto à Igreja, a menos que se declarem "sem religião" ou que entreguem uma declaração deixando formalmente a Igreja. O imposto religioso é regulamentado por lei, correspondendo a uma parcela que varia entre 8% e 9% do valor do imposto de renda, dependendo da região em que o contribuinte vive.

 MD/dpa/afp
Revisão: Francis França

Catolicismo no Brasil em Declínio e a CNBB discute o “mapa das religiões” do IBGE


 
Queda livre

Faustino Teixeira,
texto publicado em Rede,
Boletim de Cristãos (julho 2012)
 
Os dados que acabam de ser apresentados pelo IBGE com respeito às religiões brasileiras no Censo Demográfico de 2010 confirmam a situação de progressivo declínio na declaração de crença católica. Os dados apresentados indicam que a proporção de católicos caiu de 73,8% registrados no censo de 2000 para 64,6% nesse último Censo, ou seja, uma queda considerável. Trata-se de uma queda que vem ocorrendo de forma mais impressionante desde o censo de 1980, quando então a declaração de crença católica registrava o índice de 89,2%. Daí em diante, a sangria só aumentou: 83,3% em 1991, 73,8 % em 2000 e 64,6% em 2010. O catolicismo continua sendo um “doador universal” de fiéis, ou seja, “o principal celeiro no qual outros credos arregimentam adeptos”, para utilizar a expressão dos antropólogos Paula Montero e Ronaldo de Almeida. A redução católica ocorreu em todas as regiões do país, sendo a queda mais expressiva registrada no Norte, de 71,3% para 60,6%. O estado que apresenta o menor percentual de católicos continua sendo o do Rio de Janeiro, com 45,8% (uma diminuição com respeito ao censo anterior que apontava 57,2%). O estado brasileiro com maior percentual de católicos continua sendo o Piauí, com 85,1% de declarantes (no censo anterior o registro era de 91,4%). Os dados indicam que o Brasil continua tendo uma maioria católica, mas se a tendência apontada nesse último censo continuar a ocorrer teremos em breve uma significativa alteração no campo religioso brasileiro, com impactos importantes em vários campos.

 O novo censo aponta um dado que já era previsível, a continuidade do crescimento evangélico no Brasil. Foi o segmento que mais cresceu segundos os dados agora apresentados: de 15,4% registrado no censo de 2000 para 22,2%. O aumento é bem significativo, em torno de 16 milhões de pessoas. Um olhar sobre os três últimos censos possibilita ver claramente essa irradiação crescente: 6,6% em 1989, 9,0% em 1991, 15,4% em 2000 e 22,2% em 2010. O Brasil vai, assim, se tornando cada vez mais um país de presença evangélica. Há que sublinhar, porém, que a força desse crescimento encontra-se no grupo pentecostal, que é o responsável principal por tal crescimento, compondo 60% dos que se declararam evangélicos (no censo anterior, o peso decisivo no crescimento dos evangélicos, em 15,44% da declaração de crença, foi dado também pelo pentecostais, que sozinhos mantinham 10,43% do índice geral evangélico). Os evangélicos de missão não registram esse crescimento expressivo, firmando-se em 18,5% da declaração de crença evangélica.

 Os “sem religião”, que no censo de 2000 representavam a terceira maior declaração de crença no Brasil mantiveram o seu crescimento, ainda que em ritmo menor do que o ocorrido na década anterior. Eles eram 7,28% no censo de 2000 e subiram agora para 8% (um índice que comporta mais de 15 milhões de pessoas), e o seu registro mais significativo continua sendo no Sudeste. Esse crescimento não indica, necessariamente, um crescimento do ateísmo, mas uma desfiliação religiosa, um certo desencanto das pessoas com as instituições religiosas tradicionais de afirmação do sentido. Reflete um certo “desencaixe” dos antigos laços, como bem mostrou Antônio Flávio Pierucci em suas pesquisas.

Os espíritas também seguem crescendo. Os dados do censo de 2010 indicam um crescimento importante, com respeito ao censo anterior: de 1,3% para 2%. São agora cerca de 3,8 milhões de adeptos declarantes. Trata-se do núcleo que tem os melhores indicadores de educação, envolvendo o maior número de pessoas cm nível superior completo (31,5%). Os dados apontados pelo censo são importantes, mas há que lembrar a presença de uma “impregnação espírita” na sociedade brasileira que escapa à abordagem estatística. Isso os estudiosos do espiritismo têm mostrado com pertinência. As crenças e práticas espíritas têm uma alta “ressonância social”, transbordando a dinâmica de vinculação aos centros espíritas.

Quanto às religiões afro-brasileiras, tanto a umbanda como o candomblé mantiveram-se no eixo de 0,3% de declaração de crença. Não houve mudança substantiva com respeito ao censo anterior, que indicava a porcentagem de 0,26% para a umbanda e 0,08 para o candomblé.

Com respeito às outras religiões, permanecem com uma representatividade pequena que em sua soma geral não ultrapassa 3,2% de declaração de crença. Mantém-se viva a provocação feita por Pierucci em artigo escrito depois do censo de 2000 sobre a diversidade religiosa no Brasil, de que o Brasil continua hegemonicamente cristão, e a diversidade religiosa – ainda que em crescimento -, permanece apertada em estreita faixa um pouco acima de 3% da declaração de crença. Com base nos dados do censo agora apresentado, os cristãos configuram 86,8% da declaração de crença. Não há dúvida que isso pode ser problematizado com a questão complexa da múltipla pertença ou então da malha larga do catolicismo, que envolve, como diz Pierre Sanchis a presença de “muitas religiões” em seu interior.
 

No mato sem cachorro?

CNBB reflete sobre respostas da Igreja aos dados mostrados no “mapa das religiões” do IBGE (26/09/2012)
 

 Os bispos que compõem o Conselho Episcopal Pastoral, Consep, reunidos em Brasília, desde a manhã desta terça-feira, 25 de setembro, voltaram a discutir o quadro geral das religiões no Brasil apresentado pelos resultados do Censo feito pelo IBGE em 2010 e publicados em junho deste ano. Desta vez, a reflexão foi dirigida às iniciativas pastorais que devem ser tomadas ou reforçadas para responder ao fato de que caiu o número de brasileiros que se declaram membros da Igreja Católica.

Segundo o IBGE, "os resultados do Censo Demográfico 2010 mostram o crescimento da diversidade dos grupos religiosos no Brasil. A proporção de católicos seguiu a tendência de redução observada nas duas décadas anteriores, embora tenha permanecido majoritária. Em paralelo, consolidou-se o crescimento da população evangélica, que passou de 15,4% em 2000 para 22,2% em 2010. Dos que se declararam evangélicos, 60,0% eram de origem pentecostal, 18,5%, evangélicos de missão e 21,8 %, evangélicos não determinados". A pesquisa revela também "que os católicos romanos e o grupo dos sem religião são os que apresentaram percentagens mais elevadas de pessoas do sexo masculino. Os espíritas apresentaram os mais elevados indicadores de educação e de rendimentos".

Padre Thierry Linard de Guertechin, presidente do Instituto Brasileiro de desenvolvimento, IBRADES, organismo anexo da CNBB, resumiu a questão apresentada no chamado "mapa das religiões". Ele lembra que não se deve prender ao que se têm destacado muito às duas categorias de "católicos" e "evangélicos". Há novas comunidades cristãs que cresceram. É preciso ainda considerar que cresceu também o número dos que se declaram sem religião. Padre Thierry ressaltou que o casamento tem sido um fator importante na análise da situação atual. Há um número considerável de casais com uniões consideradas não regulares que estão fora das contas oficiais sobre os membros da Igreja. Lembrou também que há que se considerar a situação das comunidades que não têm assistência dos ministros ordenados. E não se pode esquecer que há declaração daqueles que não são praticantes.

Os bispos abriam uma conversa ampla. "É preciso considerar o resultados das pesquisas na elaboração dos planos de pastoral de nossas dioceses", disse dom Joaquim Mol, bispo auxiliar de Belo Horizonte (MG) e presidente da Comissão de Educação e Cultura da CNBB. "É preciso pensar em estruturas mais simples para nossas comunidades", continuou dom Mol e afirmou que estão fazendo em Belo Horizonte uma pesquisa, tecnicamente profissional, para se aprofundar o significado dos números. Dom João Carlos Petrini, bispo de Camaçari (BA) e presidente da Comissão Episcopal para a Vida e Família, falou que o percentual dos não praticantes dos brasileiros que se declaram católicos torna-se, facilmente, disponível para a oferta de outras Igrejas que têm, por exemplo, o trabalho de visitar as pessoas de casa em casa com a disposição de ler a Bíblia.


"Os números mostram que a nossa catequese não é ainda suficiente", afirmou dom Jacinto Bergmann, bispo de Pelotas (RS) e presidente da Comissão Episcopal Pastoral para a animação bíblico-catequético. Ele considera que a formação de grupos bíblicos pode ser um sinal de esperança na evangelização. "É preciso levar a sério as pesquisas", disse o cardeal dom Claudio Hummes, arcebispo emérito de São Paulo e presidente da Comissão Episcopal para a Amazônia. Ele diz que desde que se começou a divulgar dados sobre o número dos católicos verifica-se quedas. Considera que é importante considerar o modo como se acolhe para os sacramentos e é preciso partir da fé do povo e não colocar em dúvida a fé que as pessoas manif estam ainda que não se tenha uma exposição teologicamente elaborada. O cardeal também mencionou a importância da participação dos leigos. Sobre esse tema, o prof. Geraldo Aguiar, assessor da Comissão Episcopal Pastoral, declarou: "Acreditem nos leigos e haverá um processo de transformação da nossa Igreja".

Dom Guilherme Werlang, bispo de Ipameri (GO), presidente da Comissão Episcopal Pastoral para a Caridade, Justiça e a Paz, destacou a importância da formação dos ministros ordenados considerando que a Eucaristia é a fonte e o horizonte da Igreja. Reforçou ainda a importância da participação dos leigos com a valorização dos leigos e a ênfase no "ir ao povo". Nesta linha, prof. Sergio Coutinho, da Comissão do Laicato, chamou atenção para a correlação dos resultados do Censo de IBGE com os dados da pesquisa do CERIS. Houve um crescimento no número das paróquias, aumento dos números dos párocos, ampliação do quadro dos diáconos. Insistiu na importância das comunidades eclesiais de base com uma séria "desideologização" dessas expressões legítimas da vida da Igreja.

"Nós corremos o risco de fazer boas análises sem que isso reflita na pastoral considerando também o aprofundamento da realidade local", lembrou dom Sergio da Rocha, arcebispo de Brasília (DF) e presidente da Comissão Episcopal Pastoral para a Doutrina da Fé. "Formar cristãos de verdade" é esse o grande objetivo da evangelização e isso, certamente, refletirá nos números. Dom Pedro Brito, arcebispo de Palmas (TO) e presidente da Comissão Episcopal Pastoral para os ministérios ordenados, considera importante a formação de missionários leigos nas comunidades. Dom Sergio Braschi, bispo de Ponta Grossa (PR), presidente da Comissão Episcopal Pastoral para a Ação Missionária realçou a valorização dos diáconos.

Dom Dimas Lara Barbosa, arcebispo de Campo Grande (MS) e presidente da Comissão Episcopal Pastoral para a Comunicação destacou a iniciativa da setorização das paróquias, comunidade de comunidades, porque considera que essa urgência "puxa" todas as outras apresentadas pelas Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora. Dom Eduardo Pinheiro, bispo auxiliar de Campo Grande e presidente da Comissão Episcopal Pastoral reforçou a eficácia das iniciativas da setorização das paróquias e também lembrou que a peregrinação da cruz e do ícone de Nossa Senhora está dando um recado claro por parte dos jovens: "nós estamos aqui!". No âmbito de todas essas considerações, segundo Padre Sidnei Marcos Dornelas, assessor da Missão Continental, há uma integração entre os apelos da Nova Evangelização, os apelos do CELAM e as Diretrizes Gerais da CNBB.

Cabo Bruno, o mais temido justiceiro nos anos 1980, agora foi empossado pastor







DEUS É GRANDE!

Missionário da Igreja do Evangelho Quadrangular, Ministério Casa do Leão, Carlos, conhecido como Carlão, conta na frente do púlpito, na noite de ontem, que conheceu Florisvaldo de Oliveira, antes conhecido como Cabo Bruno, no Presídio de Tremembé.
Pouco mais de um mês depois de ser colocado em liberdade, Florisvaldo de Oliveira assumiu ontem a função de pastor, substituindo do cargo sua mulher, Dayse França, que comandou a igreja durante dois anos. A cerimônia durou cerca de 2h30 e teve a presença de mais de dez pastores, uma comitiva de quatro representantes da sede da igreja no Rio, carcereiros do presídio e ex-detentos convertidos.
No começo do culto, seus três enteados, filhos de Dayse, entoaram canções religiosas que levaram parte dos 50 presentes às lágrimas. Na igreja, um antigo restaurante todo envidraçado, no topo de uma colina, os presentes eram chamados para falar a respeito da transformação de Florisvaldo. "O mundo todo e a sociedade podem olhar para você atravessado. Ele (Jesus) olha reto", iniciou a pregação o pastor Airton, olhando para Florisvaldo, que acompanhou os testemunhos de olhos fechados. Durante as músicas, dançava discretamente e levantava a mão direita.

Recuperação. Há exatos 30 anos, em 1982, quando ainda era soldado da Polícia Militar, Cabo Bruno passou a matar os jovens dos bairros da periferia da zona sul da cidade, suspeitos de serem criminosos. Bancado pelos comerciantes locais, se tornou um dos justiceiros mais famosos e temidos de São Paulo. Matava por não acreditar na recuperação dos "bandidos" que, para ele e para os demais justiceiros e seus financiadores, deveriam ser exterminados. Em entrevistas, a jornais dizia, orgulhoso, ter matado mais de 50 pessoas.
Na cerimônia de ontem, ele e os demais testemunhavam justamente sobre as chances que devem ser dadas para que as pessoas possam mudar. "Todos podem mudar. Essas mudanças são o maior milagre de Deus", dizia o irmão Pedro Silvestre. "Não cabe a nenhum de nós julgar o próximo, ainda que seus pecados sejam vermelhos como o escarlate, se tornarão brancos como a neve", dizia o bispo Vladimir, da Igreja Refúgio em Cristo, que veio do Rio especialmente para a cerimônia.

Almas resgatadas. Depois de 21 anos preso, considerando as três fugas ao longo dos anos 1980, Florisvaldo e outros pastores defendiam os prisioneiros e o trabalho missionário nas cadeias. "Lá dentro tem homens e mulheres de Deus. Quem não pecou que atire a primeira pedra. As almas deles precisam ser resgatadas."
Desde que se converteu, segundo os depoimentos, Florisvaldo se mostrou uma pessoa metódica e empenhada. Construiu uma igreja no Presídio de Tremembé. Fez o púlpito com madeira, pintou de azul, lixou e pintou de novo. "Se eu não ficasse tanto tempo, talvez não estivesse agora aqui", disse.

As trágicas histórias que viveu não foram mencionadas durante o culto, ao contrário do que costuma ocorrer nos testemunhos evangélicos. "Queremos esquecer o passado", disse a mulher, Dayse. "Somos hoje servos de Deus e queremos ter paz para viver."
Filho. No culto estava presente ainda a missionária Alaíde Pereira que, em 1991, foi a primeira pessoa a sugerir que Florisvaldo mudasse de vida. Ela chorou ao longo de toda a cerimônia. "Ele é um filho para mim", disse.


A mulher, Dayse, pediu a todos que orassem pelo sucesso do novo pastor. Depois de assinar o documento de posse, Florisvaldo fez sua primeira fala como pastor. Disse que iria saquear o inferno, tomando as almas de Satanás e as entregando para um reino de luz. "Nunca fui de ficar parado", disse o evangélico, que agora diz continuar sua guerra de forma pacífica.

[BRUNO PAES MANSO , TAUBATÉ - O Estado de S.Paulo]

  Pouco mais de um mês depois de deixar a cadeia, onde cumpriu pena por quase três décadas, o ex-policial militar conhecido como Cabo Bruno foi assassinado, nesta quarta-feira (26) à noite, no interior de São Paulo.Foram pelo menos dez tiros. Cabo Bruno voltava de um culto com a mulher e um parente quando foi alvejado.

Do amor e do ódio e do índio


 

Foi uma experiência de amor; amor que nos remete a nós mesmos, e que nos alimenta com a possível esperança de um mundo de diferentes que se mirem sem medo ou ódio.
Voltamos, hoje, da viagem aos diferentes e humanos Guaranis Kaiowá, em Mato Grosso do Sul. Viagem de fundo amoroso, sem dúvida, em que pese o amor doer com a dor do outro e que isso nos remeta à nossa humanidade, tão singela, tão impotente por vezes. O ódio aos Guaranis está em todo canto por aquele Estado tão cheio de verde da cana e da soja e do dinheiro. E, com o encanto dos que lutam junto dos Guaranis seguem a ameaça, a interdição, o assombro.
Emocionante ver os indígenas nos receberem com rituais e danças e celebrações. Que se espantem todos os espíritos do mal! Dançamos, pisamos na terra deles, com eles. Ouvimos e fomos ouvidos. Foi emoção enrolada em emoção. Fizemos um minuto de silêncio, em meio à mata verde, em círculo, no centro o local onde o Nisio Gomes sangrou e sangrou. Crianças tão pequenas e nada temerosas, com abraços e risos e danças também. Muitos líderes falaram, e "porque a justiça não se concretiza se nós, indígenas, aceitamos a lei do branco"? E nós, juízes, ali, "veneno e antídoto" a engolir em seco lágrimas insuspeitas.
 
Conseguimos, estou certa, nos fazer ver além e através da toga. E foi bom. E o líder Jorge bradou justiça com a Constituição na mão, e as mulheres fizeram, na história, sua segunda ATY GUASU (assembleia) para discutir o medo de não terem terra, alimento, saúde e identidade. Mulheres indígenas com voz. Homens indígenas que querem voltar a ocupar seu território sagrado e tão vilipendiado. E as atrocidades se repetem compassadamente.
 
Nos agradeceram os companheiros brancos, que lá nos receberam, e nos presentearam com a fala de que, com toda certeza, nós, juízes brancos, ao irmos até lá "fizemos história na história deles". Mais lágrimas e legítimas. E foi tocante saber que eles acharam honroso e importante que juízas e um juiz que lá estiveram se fizeram acompanhar por familiares, crianças e filhos. E tudo ficou tão familiar, tão igual, tão brasil profundo de brancos e índios... um alento, para todos, e em especial para aqueles que lá, guerreiros bravios, lutam em prol da causa Guarani; lá, em Mato Grosso do Sul, onde juízes decidem os processos de uma perspectiva tão divorciada da terra e dos humanos valores indígenas, a ponto de entenderem que quando a prova é apenas a "fala do índio", ainda que sejam dezenas deles, alega-se "falta de prova" para por fim ao caso...

Afinal, para esse cego olhar da justiça de branco, palavra de índio não vale!
Dora Martins, Juíza da Infância e Juventude.

Indignados do campo: MST ataca pai do Fome Zero, que elogiou agronegócio


O Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e representantes de sete entidades que atuam na área da defesa dos direitos humanos e de agricultores se disseram na segunda-feira (17) "indignados" e com "medo" por causa de artigo do diretor-geral da FAO, o brasileiro José Graziano da Silva, em parceria com Suma Chakrabarti, presidente do Banco Europeu para a Reconstrução e o Desenvolvimento (Berd), no qual os dois afirmam que "o mundo precisa de mais alimentos" na luta contra a fome e sustentam que "o setor privado pode ser o principal motor de tal crescimento". O texto, que saiu no último dia 6, na edição europeia do The Wall Street Journal, tem o título de
 
"Fome por Investimento".

Em sua nota, o MST e seus aliados acusam a FAO e o Berd de pregarem um modelo de agricultura que destrói a produção camponesa. "Indignação e medo foi o que nos provocou o artigo com assinatura de José Graziano da Silva e Suma Chakrabarti", afirmaram. E a nota prossegue: "Ainda que se refiram especificamente à Europa Oriental e ao Norte de África, também fazem um chamado a que os investimentos e a concentração de terras se generalizem em todo mundo".

Graziano foi ministro de Segurança Alimentar e Combate à Fome, no início do governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e a ele coube comandar o Programa Fome Zero. Abandonado tempos depois, o programa foi substituído pelo bem-sucedido Bolsa Família.

O artigo dos dois economistas menciona um importante encontro realizado na semana passada, na Turquia, por grandes empresas de agronegócio de vários países da Europa Central. Destacam que "severos períodos de seca, aumento de preço dos grãos e escassez de alimentos (...) constituem um urgente convite à ação". E alinham, a seguir, as avaliações que deixaram os movimentos sociais brasileiros indignados: "Dinâmicas, eficientes empresas privadas transformaram países como Rússia, Ucrânia e Casaquistão, após o colapso de suas fazendas coletivas, em gigantescos exportadores de grãos, em nossos dias".

Esses três países, prosseguiram, "já garantem 15% das exportações mundiais de grãos, e com políticas apropriadas poderão dobrar as suas colheitas". Por fim, eles convidam essas empresas a ampliar seus investimentos em compra de terras. Admitem, porém, que para conseguir mudar o cenário e fornecer mais alimentos ao mundo, "um bocado de trabalho é necessário". E o setor privado "precisa duplicar o investimento em terras, em equipamentos e em sementes". Dizem os dois, por fim, que "o debate sobre o papel do setor privado na segurança alimentar mundial precisa ser levado em conta não apenas na Europa emergente, na Ásia e na África, mas também nos países ocidentais".

Reação

Na sua reação às sugestões da FAO e do Berd, a nota do MST e de seus aliados destaca que "(os dois) chamam os governos a facilitar os grandes negócios privados na agricultura". Além disso, trataram "o setor camponês e as poucas políticas de proteção da agricultura que ainda existem como um fardo, um peso que não permite avançar o desenvolvimento agrícola e que deve ser eliminado".

[18 de setembro de 2012 - JOÃO DOMINGOS - Agência Estado]

 

O veredicto de Geraldo Alckmin | Artigo de Maria Rita Kehl sobre a violência que resta da ditadura



Integrante da Comissão da Verdade, a psicanalista Maria Rita Kehl traça paralelo entre a violência de Estado da ditadura (1964-85) e a da PM paulista, que alegou "resistência seguida de morte" após matar nove pessoas no dia 12. A justificativa, típica dos anos de chumbo, foi endossada pelo governador Alckmin.

 "Quem não reagiu está vivo", disse o governador de São Paulo ao defender a ação da Rota na chacina que matou nove supostos bandidos numa chácara em Várzea Paulista, na última quarta-feira, dia 12. Em seguida, tentando aparentar firmeza de estadista, garantiu que a ocorrência será rigorosamente apurada.

Eu me pergunto se é possível confiar na lisura do inquérito, quando o próprio governador já se apressou em legitimar o morticínio praticado pela PM que responde ao comando dele.

"Resistência seguida de morte": assim agentes das Polícias Militares, integrantes do Exército e diversos matadores free-lancer justificavam as execuções de supostos inimigos públicos que militavam pela volta da democracia durante a ditadura civil militar, a qual oprimiu a sociedade e tornou o país mais violento, menos civilizado e muito mais injusto entre 1964 e 1985.

Suprimida a liberdade de imprensa, criminalizadas quaisquer manifestações públicas de protesto, o Estado militarizado teve carta branca para prender sem justificativa, torturar e matar cerca de 400 estudantes, trabalhadores e militantes políticos (dos quais 141 permanecem até hoje desaparecidos e outros 44 nunca tiveram seus corpos devolvidos às famílias - tema atual de investigação pela Comissão Nacional da Verdade).

Esse número, por si só alarmante, não inclui os massacres de milhares de camponeses e índios, em regiões isoladas e cuja conta ainda não conseguimos fechar. Mais cínicas do que as cenas armadas para aparentar trocas de tiros entre policiais e militantes cujos corpos eram entregues às famílias totalmente desfigurados, foram os laudos que atestavam os inúmeros falsos "suicídios".

HERZOG

A impunidade dos matadores era tão garantida que eles não se preocupavam em justificar as marcas de tiros pelas costas, as pancadas na cabeça e os hematomas em várias partes do corpo de prisioneiros "suicidados" sob sua guarda. Assim como não hesitaram em atestar o suicídio por enforcamento com "suspensão incompleta", na expressão do legista Harry Shibata, em depoimento à Comissão da Verdade, do jornalista Vladimir Herzog numa cela do DOI-Codi, em São Paulo.

Quando o Estado, que deveria proteger a sociedade a partir de suas atribuições constitucionais, investe-se do direito de mentir para encobrir seus próprios crimes, ninguém mais está seguro. Engana-se a parcela das pessoas de bem que imaginam que a suposta "mão de ferro" do governador de São Paulo seja o melhor recurso para proteger a população trabalhadora.

Quando o Estado mente, a população já não sabe mais a quem recorrer. A falta de transparência das instituições democráticas -qualificação que deveria valer para todas as polícias, mesmo que no Brasil ainda permaneçam como polícias militares- compromete a segurança de todos os cidadãos.

Vejamos o caso da última chacina cometida pela PM paulista, cujos responsáveis o governador de São Paulo se apressou em defender. Não é preciso comentar a bestialidade da prática, já corriqueira no Brasil, de invariavelmente só atirar para matar - frequentemente com mais de um tiro.

Além disso, a justificativa apresentada pelo governador tem pelo menos uma óbvia exceção. Um dos mortos foi o suposto estuprador de uma menor de idade, que acabava de ser julgado pelo "tribunal do crime" do PCC na chácara de Várzea Paulista. Ora, não faz sentido imaginar que os bandidos tivessem se esquecido de desarmar o réu Maciel Santana da Silva, que foi assassinado junto com os outros supostos resistentes.

Aliás, o "tribunal do crime" acabara de inocentar o acusado: o senso de justiça da bandidagem nesse caso está acima do da PM e do próprio governo do Estado. Maciel Santana morreu desarmado. E apesar da ausência total de marcas de tiros nos carros da PM, assim como de mortos e feridos do outro lado, o governador não se vexa de utilizar a mesma retórica covarde dos matadores da ditadura -"resistência seguida de morte", em versão atualizada: "Quem não reagiu está vivo".

CAMORRA

Ora, do ponto de vista do cidadão desprotegido, qual a diferença entre a lógica do tráfico, do PCC e da política de Segurança Pública do governo do Estado de São Paulo? Sabemos que, depois da onda de assassinatos de policiais a mando do PCC, em maio de 2006, 1.684 jovens foram executados na rua pela polícia, entre chacinas não justificadas e casos de "resistência seguida de morte", numa ação de vendeta que não faria vergonha à Camorra. Muitos corpos não foram até hoje entregues às famílias e jazem insepultos por aí, tal como aconteceu com jovens militantes de direitos humanos assassinados e desaparecidos no período militar.

Resistência seguida de morte, não: tortura seguida de ocultação do cadáver. O grupo das Mães de Maio, que há seis anos luta para saber o paradeiro de seus filhos, não tem com quem contar para se proteger das ameaças da própria polícia que deveria ajudá-las a investigar supostos abusos cometidos por uma suposta minoria de maus policiais. No total, a polícia matou 495 pessoas em 2006.

Desde janeiro deste ano, escreveu Rogério Gentile na Folha de 13/9, a PM da capital matou 170 pessoas, número 33% maior do que os assassinatos da mesma ordem em 2011. O crime organizado, por sua vez, executou 68 policiais. Quem está seguro nessa guerra onde as duas partes agem fora da lei?

ASSASSINATOS

A pesquisadora norte-americana Kathry Sikkink revelou que o Brasil foi o único país da América Latina em que o número de assassinatos cometidos pelas polícias militares aumentou, em vez de diminuir, depois do fim da ditadura civil-militar.

Mudou o perfil socioeconômico dos mortos, torturados e desaparecidos; diminuiu o poder das famílias em mobilizar autoridades para conseguir justiça. Mas a mortandade continua, e a sociedade brasileira descrê da democracia.

Hoje os supostos maus policiais talvez sejam minoria, e não seria difícil apurar suas responsabilidades se houvesse vontade política do governo. No caso do terrorismo de Estado praticado no período investigado pela Comissão da Verdade, mais importante do que revelar os já conhecidos nomes de agentes policiais que se entregaram à barbárie de torturar e assassinar prisioneiros indefesos, é fundamental que se consiga nomear toda a cadeia de mando acima deles.

Se a tortura aos oponentes da ditadura foi acobertada, quando não consentida ou ordenada por autoridades do governo, o que pensar das chacinas cometidas em plena democracia, quando governadores empenham sua autoridade para justificar assassinatos cometidos pela polícia sob seu comando?

Como confiar na seriedade da atual investigação, conduzida depois do veredicto do governador Alckmin, desde logo favorável à ação da polícia? Qual é a lisura que se pode esperar das investigações de graves violações de Direitos Humanos cometidas hoje por agentes do Estado, quando a eliminação sumária de supostos criminosos pelas PMs segue os mesmos procedimentos e goza da mesma impunidade das chacinas cometidas por quadrilhas de traficantes?

Não há grande diferença entre a crueldade praticada pelo tráfico contra seis meninos inocentes, no último domingo, no Rio, e a execução de nove homens na quarta, em São Paulo. O inquietante paralelismo entre as ações da polícia e dos bandidos põe a nu o desamparo de toda a população civil diante da violência que tanto pode vir dos bandidos quanto da polícia.

"Chame o ladrão", cantava o samba que Chico Buarque compôs sob o pseudônimo de Julinho da Adelaide. Hoje "os homens" não invadem mais as casas de cantores, professores e advogados, mas continuam a arrastar moradores "suspeitos" das favelas e das periferias para fora dos barracos ou a executar garotos reunidos para fumar um baseado nas esquinas das periferias das grandes cidades.

PELA CULATRA

Do ponto de vista da segurança pública, este tiro sai pela culatra. "Combater a violência com mais violência é como tentar emagrecer comendo açúcar", teria dito o grande psicanalista Hélio Pellegrino, morto em 1987.

E o que é mais grave: hoje, como antes, o Estado deixa de apurar tais crimes e, para evitar aborrecimentos, mente para a população. O que parece ser decidido em nome da segurança de todos produz o efeito contrário. O Estado, ao mentir, coloca-se acima do direito republicano à informação -portanto, contra os interesses da sociedade que pretende governar.

O Estado, ao mentir, perde legitimidade - quem acredita nas "rigorosas apurações" do governador de São Paulo? Quem já viu algum resultado confiável de uma delas? Pensem no abuso da violência policial durante a ação de despejo dos moradores do Pinheirinho... O Estado mente - e desampara os cidadãos, tornando a vida social mais insegura ao desmoralizar a lei. A quem recorrer, então?

A lei é simbólica e deve valer para todos, mas o papel das autoridades deveria ser o de sustentar, com sua transparência, a validade da lei. O Estado que pratica vendetas como uma Camorra destrói as condições de sua própria autoridade, que em consequência disso passará a depender de mais e mais violência para se sustentar.

[Artigo publicado no caderno Ilustríssima do jornal Folha de S.Paulo de 16/09/2012.]

PEPE MUJICA, PRESIDENTE DO URUGUAI, SÃO FRANCISCO REDIVIVO



de Montevidéu. A moradia não poderia deixar de ser modesta, já que o dirigente acaba de ser apontado como o presidente mais pobre do mundo.
Como prometido antes da eleição, o presidente do Uruguai José Pepe Mujica ainda mora em sua pequena fazenda em Rincón del Cerro, nos arredores
Pepe recebe 12.500 dólares mensais por seu trabalho à frente do país, mas doa 90% de seu salário, ou seja, vive com 1.250 dólares ou 2.538 reais ou ainda 25.824 pesos uruguaios. O restante do dinheiro é distribuído entre pequenas empresas e ONGs que trabalham com habitação: "Este dinheiro me basta, e tem que bastar porque há outros uruguaios que vivem com menos", diz o presidente.

Aos 77 anos, Mujica vive de forma simples, usando as mesmas roupas e desfrutando a companhia dos mesmos amigos de antes de chegar ao poder

Além de sua casa, seu único patrimônio é um velho Volkswagen, cor celeste, avaliado em pouco mais de mil dólares. Como transporte oficial, usa apenas um Chevrolet Corsa. Sua esposa, a senadora Lucía Topolansky também doa a maior parte de seus rendimentos.

Sem dívidas e sem conta em banco

A vida simples não é mera figuração ou tentativa de construir uma imagem, seguindo orientações de um marqueteiro. Não, ela faz parte da própria formação de Mujica, um homem que lutou contra a ditadura, foi preso e, ao lado de dezenas de [guerrilheiros e terroristas] Tupamaros, participou de uma fuga cinematográfica da antiga prisão onde hoje está o Centro Comercial Punta Carretas, em Pocitos, lutou pela volta da democracia e hoje é presidente eleito do país.

Tudo isso sem abrir mão de suas convicções, em nenhum momento – a ponto de rejeitar a ideia de mudança de sua vida por ser o chefe de uma nação. Uma de suas declarações fala por si: “A estatização é uma solução que foi abandonada. Trata-se de uma receita perfeita para desenvolver uma burocracia opressora. Continuo sendo socialista porque sou inimigo da exploração do homem pelo homem.” Sem contas bancárias ou dívidas, Mujica disse ao jornal El Mundo, da Espanha, que espera concluir seu mandato para descansar sossegado em Rincón del Cerro.

Mujica oferece residência oficial para abrigar moradores de rua.

O presidente do Uruguai, José Mujica, já ofereceu sua residência oficial para abrigar moradores de rua durante o próximo inverno caso faltem vagas em abrigos oficiais do governo.

Ele pediu que fosse feito um relatório listando os edifícios públicos disponíveis para serem utilizados pelos desabrigados e, após os resultados, avaliará se há a necessidade da concessão da sede da Presidência. De acordo com a revista semanal Búsqueda, Mujica disponibilizou ainda o Palácio de Suarez y Reyes, prédio inabitado onde ocorrem apenas reuniões de governo.

O presidente não mora em sua residência oficial, pois escolheu viver em seu sítio, localizado em uma área de classe média nas redondezas de Montevidéu. Nem mesmo seu antecessor, o ex-presidente Tabaré Vázquez (2005-2010), ocupou o palácio durante seu mandato. Ambos representam os dois primeiros governos marcadamente progressistas da história do Uruguai.
 

Moradias populares

Em julho de 2011, Mujica assinou a venda da residência presidencial de veraneio, localizada em Punta del Este, principal balneário turístico do país, para o banco estatal República. A operação rendeu ao governo 2,7 milhões de dólares e abrirá espaço para escritórios e um espaço cultural.

A venda dessa residência estava nos planos de Mujica desde que assumiu a Presidência em março de 2010. Com os fundos amealhados, será incrementado o orçamento do Plano Juntos de Moradias. Também é planejado o financiamento de uma escola agrária na região, onde jovens de baixa renda poderão ter acesso a cursos técnicos.