Do monopólio da revelação




Para o que vivem nas margens socioculturais das nossas sociedades, a palavra de Deus pode ser um instrumento de defesa de seu projeto de vida. A Igreja católica, em suas definições tradicionais, tem certa dificuldade com o reconhecimento da revelação em religiões não cristãs. Ela reserva o conceito de “revelação” para o conteúdo de seu livro sagrado, a Bíblia. 
O projeto de vida dos pobres-outros tem dois eixos: a redistribuição dos bens e o reconhecimento da alteridade. Pobreza e alteridade nem sempre coincidem. Os judeus, no regime nazista da Alemanha, os Yanomami de Roraima, os ciganos do Paraná e os homossexuais de Uganda não são nem eram necessariamente pobres. Mesmo assim, a ética cristã os defende aquém e além do projeto de vida dos pobres. Também em seus projetos de vida Deus se revela, em palavras e sinais. Para os cristãos seria difícil defender as pessoas, que são sujeitos desses projetos de vida, na base de uma mera tolerância civil, sem esse pano de fundo de um “projeto de Deus”, ou na contramão desse projeto ou simplesmente sem poder positivamente assumir esse projeto.
Seguindo esse fio condutor 

chegamos ao questionamento do monopólio salvífico e à pergunta: Como caminhar do monopólio da revelação na Igreja católica ao reconhecimento da voz de Deus nas tradições orais ou escritas da humanidade. A doutrina da revelação integralmente contida na “Bíblia” reduz a universalidade da palavra de Deus à tradição judeu-cristã e nega a possibilidade da revelação partilhada com todos os povos.

Como podemo-nos livrar dessa redução com inspirações da própria Bíblia e da reflexão pós-conciliar?

A resposta aponta para a seguinte afirmação:
Os pobres-outros e com eles a humanidade toda não são somente destinatários da salvação universal em Jesus Cristo, mas são também portadores universais da revelação de Deus. Esse reconhecimento não é algo exterior à normatividade do cristianismo, portanto, uma medida estratégica ou tática para defender a causa dos pobres-outros, mas é inerente à dinâmica do Evangelho.

No cristianismo, a questão sociocultural está estreitamente vinculada à questão da ortodoxia, e pecado significa indiferença diante da exploração e do desprezo do pobre-outro.

Para melhor configurar essa articulação entre os crucificados na história, “tocando a carne sofredora de Cristo no povo” (EG 24), e os imperativos éticos do Evangelho que visam contextualizar redenção universal, paz, misericórdia e justiça como eixos fundantes, o rumo desse texto aponta para um processo histórico que vai das revelações à revelação (e vice-versa), que para os cristãos encontra seu reflexo sistematizado nos escritos do Novo Testamento. Essa revelação no plural dos escritos bíblicos foi novamente sistematizada nos tratados da Teologia Fundamental que se confrontam com múltiplas revelações historicamente em curso, codificadas em outras chaves culturais e religiosas em livros sagrados ou tradições orais.

As diferentes revelações e sistematizações têm na Igreja um lugar de discernimento e de objetivação consensual que se pronuncia sobre o valor salvífico ou não de outros caminhos e, necessariamente, se abre para o horizonte escatológico onde as múltiplas experiências de Deus se concentrarão numa definitiva revelação de Deus, sem mediações institucionais de religiões, crenças ou igrejas.


[Introdução da palestra de Paulo Suess proferida no 3º Simpósio de Missiologia, Brasília, 27.02.2014]

Um comentário:

  1. Em todos os tempos, nos diferentes lugares do mundo, entre todas as culturas, Deus nosso Pai amoroso, suscita Profetas audaciosos, a confrontar os sistemas dominantes, injustos e desumanos, que escravizam, oprimem e desrespeitam a dignidade humana, onde ela não é reconhecida, nem preservada.
    Quando e onde a vida humana é mais vilipendiada, aí vicejam os profetas de todas as épocas, crentes e não crentes, inspirados pelo Espírito Santo de Deus que sopra onde quer, mesmo a contragosto dos que imaginam ou desejariam monopolizá-lo.
    A presença de tantas vozes proféticas entre nós questiona nossa acomodação insana, a mesmice generalizada que nos torna eventualmente insensíveis ao seguimento da Palavra, mas, produz também, uma renovada Esperança de Vida nova e plena de sentido - fortalecidos pelo Amor superabundante do Pai, a presença salvífica do Filho e a comunhão do Espírito Santo que nos une a todos e todas.

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