Dicionário da Exortação Evangelii gaudium, do papa Francisco, com 50 palavras-chave, chegou nas livrarias da Editora Paulus.




Nem todos os envolvidos nos processos pastorais cada vez mais acelerados têm o tempo suficiente para ler as quase 50 mil palavras da “Evangelii gaudium sobre o anúncio do evangelho no mundo atual”. A partir de 50 palavras-chave, o presente “Dicionário” procura facilitar a entrada nessa montanha gigante do documento com propostas surpreendentes, audazes e inovadoras, que o papa Francisco do fim do mundo enviou ao centro da Igreja. Dessa entrada sistematizada na montanha mágica, com o nome “A alegria do Evangelho”, o leitor vai trazer pedras preciosas para a construção de um projeto pastoral voltado para o povo.

Mulher emancipada e mística militante: 5º centenário do nascimento de Teresa d´ Ávila




        Dia 28 de março de 2015 faz 500 anos, que a mística e reformadora da Ordem Carmelita, Teresa d´ Ávila (1515-1582), nasceu na Espanha. Em 1622, quarenta anos depois de sua morte, Teresa foi canonizada pelo papa Gregório XV. Em 27 de setembro de 1970, Paulo VI proclamou Teresa Doutora da Igreja. É bom lembrar, que ainda em 1923, o papa Pio XI considerou uma doutora da Igreja impossível: “obstat sexus”.

        Por ocasião do 4º centenário da reforma teresiana e da canonização de Teresa, no Carmelo de Milão, em agosto de 1962, o então cardeal Montini, falou do segredo do caminho contemplativo de Teresa, de sua audácia, de seu modo severo e despojado de aparatos exteriores, de sua busca da comunhão com a fonte, com a essência da vida, que é Deus: “É na audácia de uma forma de vida como esta que consiste a dedicação. Dedicação quer dizer renúncia. [...] É a pérola da busca vigilante e contemplativa de Deus”.

        A biografia de Teresa é o espelho de uma Espanha conturbada e contraditória. Em 1485, seu avô, Juan Sanchez de Toledo, descendente de Conversos, como foram chamados judeus convertidos ao cristianismo, foi condenado à penitência pública pela Inquisição espanhola por causa de práticas judaizantes. Na época, Alonso, o pai de Teresa, tinha cinco anos.

        Na Espanha dos séculos XV e XVI, os direitos civis eram uma prerrogativa dos cristãos ou dos convertidos ao cristianismo. Ao mesmo tempo, os judeus convertidos eram suspeitos de serem conversos oportunistas que clandestinamente praticavam sua antiga religião. Esse clima de suspeitas era o motivo que, cinco anos depois de sua penitência pública, fez a família de Juan Sanchez migrar de Toledo para Ávila, onde se integrou na classe de comerciantes bem sucedidos. No decorrer dos anos, o nome Sanchez, que indicava a origem judaica, foi substituído por um título comprado de nobreza, medidas que protegeram a família de Teresa. Ela mesma se chamou nos primeiros decênios de sua vida: Doña Teresa de Cepeda y Ahumada, adotando os sobrenomes da linhagem materna.


        A expulsão dos judeus dos territórios da coroa espanhola em 1492, pelos Reis Católicos, Fernando e Isabela, mostra como naquele país eram importantes a certidão de batismo e o certificado de nobreza. Mas a história se vingou da Igreja católica espanhola. A lei iníqua do governo de Mendizábal, de 1835, efeito tardio da Revolução Francesa, despojou a Igreja de suas propriedades e todas as Ordens Monásticas foram proibidas. Os conventos carmelitas desapareceram por completo da Espanha e só em 1875, com a restauração da monarquia e a chegada de Alfonso XII, iniciou-se a restauração carmelitana naquele país.


        Quem era Santa Teresa d´Àvila?


        O carmelita frei Maximiliano Herráiz distingue três etapas na vida de Teresa: a primeira, na casa paterna, vai até os vinte anos (1515-1535), a segunda abarca 27 anos de vida religiosa carmelita, no Mosteiro da Encarnação, em Ávila. Em sua inquietude espiritual, Teresa fez um voto de que haveria de seguir sempre o caminho da perfeição. Numa noite do mês de setembro de 1560, Teresa d´ Ávila decidiu reunir um grupo de freiras na sua cela e, tomando a inspiração primitiva da Ordem do Carmo e a reforma descalça de São Pedro de Alcântara, propôs-lhes a fundação de um mosteiro de tipo eremítico, proposta que se realizou em 1562.

        No terceiro período, de 1562 até 1582, Teresa se encontra com João da Cruz (1567), ele com 25 anos e ela com 52. Entre ambos nasceu uma intensa afinidade mística e prática reformadora. Para Teresa são anos de fundações de mosteiros de monjas e monges, de reformas (carmelitas descalços!), de conflitos e de produção literária de textos norteadores para as suas reformas. Todos os livros de Teresa foram escritos nessa época.

        Entre os Carmelitos da Antiga Observância e os Carmelitos Descalços surgiram conflitos profundos. Em 1577, Teresa sofreu cárcere domiciliar em Toledo e João da Cruz foi encarcerado pelos Carmelitas da Antiga Observância. Para apaziguar a situação interna da Ordem, em 1593, o papa Clemente VIII concedeu total autonomia ao ramo dos Carmelitas Descalços. Depois de sua morte, o culto à Santa Teresa se espalhou pela Espanha durante a década de 1620. Ao lado de Santiago Matamoros, Teresa foi declarada padroeira da Espanha.

        Em seu “Caminho de Perfeição”, de 1567, Teresa de Jesus, como também foi chamada, apresentou às suas irmãs seu ideal da vida carmelita: “Não penseis, minhas amigas e irmãs, que serão muitas as coisas a serem recomendadas. [...] O primeiro é o amor de umas para com outras; o segundo, o desapego de todo criado; o terceiro, a verdadeira humildade”. Humildade significa, segundo o papa Francisco: vencer a autorreferencialidade e as atitudes apologéticas. E Teresa explica: “Vede como respondeu o Senhor pela Madalena em casa do fariseu e quando foi acusada pela própria irmã. Não vos tratará com tanto rigor como a ele próprio, que já estava na cruz, quando permitiu que um ladrão falasse por ele” (Caminho, XV,7).



        Teresa é uma peregrina na via sacra interna e externa. Não só os opositores de suas reformas do Carmo, os conflitos de sua família e as contradições de seu país e de sua época, também as fases de ateísmo espiritual, de medo do inferno e de deserto transformaram etapas de sua vida em purgatório. No sofrimento se tornou sábia, autocrítica e humilde. Das tempestades saiu de cabeça erguida e, segundo o testemunho de seus contemporâneos, nunca perdeu a sua simpatia humana e seu foco espiritual. Foram os encontros com seu amigo Jesus que transformaram seus gritos em canção: “Nada te perturbe, nada te espante [...]”. O que pode parecer alienante em Teresa são sinais de emancipação de uma mulher que, com sua humildade e seu despojamento, nadou contra muitas correntes de sua época. Como padroeira da Espanha e Doutora da Igreja começou a abalar o machismo de Santiago (“Matamoros” que nas Américas se tornou “Mataíndios”), e das Faculdades Teológicas. Mesmo depois de 500 anos, suas vitórias ainda estão por vir. “Santa Teresa de Jesus, mística militante, rogai por nós!”





O diálogo com o Islã é possível?


  
Esta e outras perguntas respondeu Dom Michael Fitzgerald, núncio emérito no Egito e ex-presidente do Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-religioso.




Na qualidade de membro da Sociedade dos Missionários da África e um estudioso da cultura árabe e islâmica, Fitzgerald é a pessoa particularmente qualificada para discutir este assunto, algo que ele fez numa palestra em 6 de março na Universidade Católica da América, organizada pelo Instituto de Pesquisa Política e Estudos Católicos e pela ONG Africa Faith and Justice Network.

Apesar de ter passado a maior parte de sua vida dialogando com o Islã, Fitzgerald não nega as dificuldades existentes neste tocante. Na citada palestra, ele começa analisando três elementos que tornam difícil o diálogo com certas categorias dos muçulmanos.

Em primeiro lugar, “há uma grande diferença na experiência de Jesus e de Maomé, e portanto na experiência fundante destas duas religiões”, disse. Ambos foram profetas com uma mensagem de conversão ao mundo. Ambos reuniram discípulos em torno de si.

“No entanto, Jesus pregou o Reino de Deus, um reino que não era deste mundo”, explicou Fitzgerald. “A sua mensagem era essencialmente uma mensagem religiosa que, embora estivesse projetada para ter um efeito no comportamento das pessoas neste mundo, poderia ser vivida dentro de qualquer ambiente ou cenário político”.

“A mensagem [de Maomé] também era essencialmente religiosa, o reconhecimento do Deus único contra o politeísmo prevalente, mas ela tinha uma dimensão social, que era liderar a formação de uma nova comunidade ligada não por laços sanguíneos ou lealdade tribal, mas pela religião: a Umma”.

A Umma era tanto uma comunidade religiosa quanto uma comunidade política, e ela pegou nas armas para sobreviver. Maomé foi tanto um profeta como um estadista.

O cristianismo pré-Constantino, por outro lado, era um movimento puramente religioso que não pegou em armas para sobreviver.

“Assim, embora o cristianismo foi, por assim dizer, tomado e usado por entidades políticas, em primeiro lugar pelos bizantinos e, depois, por vários monarcas e legisladores, em essência ele permanece independente de qualquer poder político”, disse Fitzgerald. “Enquanto que o Islã, desde o seu começo como uma comunidade separada, tem sido tanto um grupo político quanto religioso, e poder-se-ia ficar tentado a dizer que o esforço, a luta para defender a própria comunidade (se necessário usando a força das armas), é um componente natural da religião”.

Há uma tendência entre os muçulmanos em olhar de volta para o seu primeiro período, aquele dos Califas Corretamente Guiados, como a época de glória e do verdadeiro Islã. Isto tem inspirado inúmeros movimentos revivacionistas ao longo da história. Jihadistas contra muçulmanos que não praticavam uma versão pura do Islã se tornou comum. A maior parte destes movimentos eram locais e duraram pouco tempo, porém o movimento wahhabita, começado no século XVIII, ainda está entre nós e encontra respaldo na Arábia Saudita.

A atração do califado é o segundo item examinado por Fitzgerald. Ele observa que o Islã se dividiu em facções sunitas e xiitas após a morte de Maomé por causa de divergências a respeito da sucessão.

Os xiitas acreditam que Maomé nomeou Ali, seu primo, como o sucessor. Para os xiitas, cada imã designa o seu sucessor, o qual deve pertencer à família do profeta. Os xiitas creem que havia 12 imãs que seguiam Maomé e que o 12º foi ocultado e retornará no fim dos tempos para realizar um reino de justiça.

Os sunitas acreditam que Maomé não fez nenhuma provisão para a sucessão e, portanto, a sua sucessão seria determinada através de eleição por membros proeminentes da comunidade.

No entanto, apesar destas divisões, o califado durante o período de expansão islâmica e prosperidade atuou como um ponto focal de unidade para os muçulmanos. Isto durou até meados do século X, quando o califado começou a perder a sua importância até que Mustafa Kemal Ataturk finalmente a aboliu em 1924.

Ainda que fosse um ideal atraente, o califado não foi sem um fator predominante na vida do Islã e, com certeza, durante séculos não funcionou como um poder político unificador. O pronunciamento de Abu Bakr al-Baghdadi, de que ele é o califa, foi condenado pelas autoridades muçulmanas. Um destacado estudioso, Yusuf al-Qaradawi, presidente da União Internacional dos Estudiosos Muçulmanos, disse que o título de califa pode “somente ser dado por toda a nação muçulmana”.

O último aspecto que Fitzgerald analisa é a lei da Sharia pela qual a Umma deve se regular. Ele observa que existem quatro fontes para a Sharia: o Corão, a Suna, ou tradição do profeta; a “qiyas”, ou analogia; e o “ijma”, ou consenso entre os estudiosos. Estas múltiplas fontes e a ambiguidade textual lideram o debate e as divergências sobre a Sharia de forma que existem, pelo menos, quatro diferentes escolas de interpretação.

Assim, quando se diz que lei da Sharia será aplicada, a questão é qual Sharia. Quem vai decidir qual tipo a ser aplicado, e quem deve controlar a sua aplicação, certificando-se de que todas as condições foram cumpridas antes que algum juízo seja feito?

Fitzgerald conclui: “Os jihadistas takfiri, que proclamaram um Estado Islâmico onde a lei da Sharia será observada sob a orientação de um califa autodesignado, não estão mantendo a tradição islâmica, independentemente do que digam”. Ele disse acreditar que o diálogo é impossível com tais pessoas “que estão convencidas de que detêm a verdade e que, portanto, não precisam escutar os outros”.


Mas o diálogo com os demais muçulmanos é possível, acrescentou. Fitzgerald apontou quatro tipos de diálogos possíveis e citou o Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-Religioso: o diálogo da vida, o diálogo das obras, o diálogo dos intercâmbios teológicos, e o diálogo da experiência religiosa.

O diálogo da vida, ou o daquilo que Fitzgerald chama de uma vida harmoniosa, acontece “onde as pessoas se esforçam por viver num espírito de abertura e de boa vizinhança, compartilhando as suas alegrias e tristezas, os seus problemas e as suas preocupações”, nas palavras do Pontifício Conselho.

Cristãos e muçulmanos têm vivido, lado a lado, por séculos na África e na Ásia, e agora os muçulmanos estão presentes, em número crescente, na Europa e na América do Norte.
“Passos devem ser dados no sentido de permitir que as pessoas venham a conhecer umas às outras e a criar harmonia”, disse Fitzgerald. O aumento da violência fez isso ficar mais difícil, mas também mais necessário.

Em segundo lugar, há o diálogo das obras, onde os cristãos e muçulmanos trabalham juntos para encarar os problemas da sociedade. Cristãos e muçulmanos encontraram uma causa comum no movimento pró-vida bem como na defesa dos direitos humanos, nas reformas sociais e no cuidado do meio ambiente. O trabalho em conjunto cria entendimento e confiança.

Em terceiro lugar, há o diálogo dos intercâmbios teológicos onde, segundo o Pontifício Conselho, “os peritos procuram aprofundar a compreensão das suas respectivas heranças religiosas, e apreciar os valores espirituais uns dos outros”. Temas tais como justiça e relações comerciais internacionais, ética dos negócios, problemas de migração, meios de comunicação e religião, respeito pelo meio ambiente e questões de bioética foram, todos, retomados nestes diálogos. Alguns diálogos também discutiram tópicos puramente teológicos, como os fundamentos da santidade e da razão, da fé e da pessoa humana.

Por fim, há o diálogo da experiência religiosa, onde, de acordo também com o Pontifício Conselho, “as pessoas radicadas nas próprias tradições religiosas compartilham as suas riquezas espirituais, por exemplo, no que se refere à oração e à contemplação, à fé e aos caminhos da busca de Deus e do Absoluto”. As comunidades religiosas como a dos beneditinos e dos trapistas se envolveram em tais diálogos.

Fitzgerald concluiu dizendo que o diálogo cristão-muçulmano existe e que, portanto, é possível”. Mas a situação é desigual. “Há lugares onde existe muito pouco ou nenhum interesse em um tal diálogo, também há outros lugares onde as relações com os muçulmanos se tornaram uma preocupação normal para as comunidades cristãs”.


Mas, ao mesmo tempo, uma cooperação está crescendo, e com ela uma suspeita mútua, o que torna o diálogo mais difícil. Fitzgerald não tem muita confiança em encontros internacionais de líderes e estudiosos religiosos. É um diálogo e uma cooperação no nível local o que faz a diferença. Disse que o diálogo local não deve ser visto como uma brigada de incêndio para se responder às crises, mas sim como uma estratégia de prevenção que constrói relações que vacina/inocula as comunidades para não caírem na violência por causa de suspeitas e mal-entendidos.

“O que implica aumentar o conhecimento mútuo, superar preconceitos, criar confiança”, explicou. “Significa fortalecer os laços de amizade e colaboração a tal ponto que as influências negativas que vêm de fora possam ser trabalhadas”.

“O objetivo aqui é construir solidamente boas relações entre as pessoas de diferentes religiões, ajudando-as a viver em paz e harmonia”, disse Fitzgerald. Ele nota que onde os líderes muçulmanos e cristãos bem como as comunidades têm uma história de cooperação, o conflito é menos provável de se transformar em violência.

“É o conflito o que vira notícia, não a ausência dele”, observou. “E, no entanto, é esta ausência de conflito o que é, realmente, a boa nova”.

Onde o conflito ocorre, há a necessidade de uma purificação das memórias, o que “significa escutar os diferentes relatos sobre os mesmos eventos; significa prestar atenção nos fatos e percepções e tentar chegar a um entendimento comum”, explicou. “Quando se analisa o passado com honestidade, normalmente se verá que nem tudo é oito ou 80. Podem existir erros em ambos os lados. Em todo caso, o reconhecimento dos erros cometidos, das injustiças, atrocidades, é um passo importante em qualquer processo de reconciliação”.


“O diálogo inter-religioso deveria levar a uma busca comum de compreensão, a uma simpatia partilhada por aqueles que sofrem e que passam por necessidades; deveria levar a uma sede de justiça para todos, ao perdão pelo erro cometido, juntamente com uma prontidão para reconhecer os próprios equívocos cometidos, sejam eles individuais ou coletivos”, concluiu Fitzgerald. “Este parece ser o verdadeiro caminho em direção ao diálogo cristão-muçulmano”.

Rua, Governo, Oposição: Se esqueceram de mim. O capital tem nada a negociar com os povos indígenas.


Foram se ajeitando e se ajuntando aos poucos. Entre as indumentárias e instrumentos mais importantes os vistosos cocares, o urucum e jenipapo, o maracá, o tacape e arco e flecha rituais.


No coração um enorme sentimento de paz e guerra. Vieram lutar pela terra, pelos seus direitos, pela vida de seu povo e de todas as nações indígenas do Brasil. Véspera de abril. Na memória a falácia do falso “descobrimento”. Vem do litoral do “encobrimento” para a capital do vil poder. Vem do Monte Pascoal, tão admirado por Cabral, vem de Barra Velha, de novas lutas pela terra, vem de Cumuruxatiba, de Prado, vem de Porto Seguro, de Santa Cruz de Cabrália, de Coroa Vermelha e uma dezena de outras aldeias. No Centro de Formação Vicente Cañas, a primeira parada. Início do ritual. É de encher o coração sentir a alma dessa gente retumbar ao som do maracá, da borduna e da flauta. É hora de fazer a esperança avançar. Hora de protestar, de exigir os direitos.

As ruas falaram na semana que passou. Mas falaram apenas no singular. Nenhuma referência ao Brasil plurinacional que é o melhor sonho para um país tão desigual, corrupto e injusto. É preciso lutar por um outro projeto de país, no qual as cores vivas e belas dos povos originários não poderão faltar. Troca de governo é ilusão passageira. É preciso trocar o projeto de nação, aprofundar a democracia, vencer o estreito calabouço do autoritarismo e ditadura de uma minoria de privilegiados.


“Se negarem nossas terras haverá guerra. Não vamos aceitar perder nossas terras. Isso é vandalismo. Fazem das audiências públicas sessões de terrorismo. Morro lutando pelo meu povo. Estou aqui para o que der e vier”.  Essas expressões de uma das lideranças Pataxó, firmes e contundentes, denotam a consciência política de seus direitos, ao mesmo tempo em que refletem o fim da paciência depois de mais de 500 anos de opressão.

 Vários depoimentos falam da invasão, não há de cinco séculos passados, mas a atual: “Estão querendo invadir a Constituição para arrancar dela nossos direitos”. Os povos indígenas da Bahia foram os primeiros a sofrer o impacto da chegada de uma civilização marcada pelo massacre e genocídio para saquear as riquezas, as almas e a cultura de mais de mil povos, com uma população aproximada de 6 milhões de pessoas.  Nesse processo de extermínio mais de um milhão de índios foi morto a cada século.
No ano 2000 os povos originários sobreviventes marcharam para o litoral da Bahia, para, no local da invasão, dizer não ao processo de violência e etnocídio. Foram mais de 3 mil representantes de mais de 150 povos. Quando se dirigiam a Porto Seguro para dizer sua palavra sobre os 500 anos de invasão, foram dura e covardemente reprimidos para polícia.

São inúmeros os problemas que os Pataxó, Tupinambá, Pataxó-Hã-Hã-Hãe e outros povos indígenas da Bahia enfrentam. O mais grave, todavia, continua sendo a não demarcação e respeito dos territórios indígenas. Será mais um momento de exigir dos poderes o reconhecimento dos direitos e se unir aos povos indígenas do país, para dizer não à PEC 215, ao PL 1610 e às dezenas de iniciativas de rapina que tem como intuito retirar ou reduzir os direitos indígenas conquistados na Constituição de 1988.
Egon Heck – fotos Laila Menezes;
Secretariado do Cimi – Brasília,

16 de março de 2015

Repensar Deus e a Igreja no Ano Santo da Misericórdia



A proclamação do Ano Santo da Misericórdia, que terá início com a abertura da Porta Santa na Basílica de São Pedro, coincide com o cinquentenário do encerramento do Concílio Ecumênico Vaticano II, no dia 8 de dezembro de 1965.

A abertura do Portal da Misericórdia é a reabertura de um processo que, nos tempos pós-conciliares, foi arbitrariamente fechado através de uma volta aos tempos de Pio XII que condenou teologias, teólogos e teólogas que lealmente se empenharam pensar o Concílio para o mundo real e contemporâneo.

O papa Francisco veio, como na época João XXIII, para abrir a Porta de São Pedro e para mostrar que “a Igreja deve ser o lugar da misericórdia gratuita, onde todos possam sentir-se acolhidos, amados, perdoados e animados a viverem segundo a vida boa do Evangelho” (Evangelii gaudium 114).

Com Tomás de Aquino o papa invoca a Misericórdia como “a maior das virtudes” "Um pouco de misericórdia torna o mundo menos frio e mais justo": era 17 de março de 2013 quando o atual papa pronunciou essas palavras. Já em seu primeiro Angelus como Pontífice traçava assim uma das linhas-mestras do seu Magistério: a misericórida.

Para Francisco, a Misericórdia vai além da justiça: “É por isso que se diz que é próprio de Deus usar de misericórdia e é, sobretudo nisto, que se manifesta a sua onipotência»” (EG 37). Na misericórdia Deus se faz pequeno como no presépio e na cruz: “Deus nunca se cansa de perdoar” (EG 3).


O Ano Santo, que se concluirá em 20 de novembro 2016, Domingo da Festa de Cristo Rei, rosto vivo da misericórdia do Pai, será realmente “extraordinário” se conseguir fechar a Porta Santa de São Pedro, porta de uma das últimas Cortes da Europa, para todos que resistem à releitura da Boa-Nova como “Evangelho da Misericórdia” (EG 188) e “revolução de ternura” (EG 88), justiça e solidariedade.

Missão Ad gentes em contextos sem fronteiras: Desafios no mundo digitalizado






          Até hoje, a Igreja com seus silêncios institucionais, não se reconciliou com a vida pública democrática. Ela tem medo das regras dessa sociedade, que cobra transparência, autenticidade e participação. Se nessa sociedade dominada por uma paisagem medial secular, uma autoridade com exigências éticas severas, como a Igreja, comete deslizes, a vontade de morder é maior que em outros casos. O carro de um membro que pertence à uma organização com a pretensão de ser uma instituição pobre para os pobres é diferentemente avaliadoque o Mercedes de um deputado federal ou o dono de um conglomerado midiático.


          Terceira Parte da palestra:

3. Construção da cultura do encontro em comunidades e redes


          “Nova colonização”, “distância física” e “relacionamentos” desiguais entre destinatários e emissores de mensagens caracterizam as desvantagens do mundo digital. Sem desprezar as novas possibilidades do mundo digital, a pastoral deve priorizar os trilhos da mística e da profecia que atravessam a “cultura do encontro”.

          3.1. Dimensão mística

          A pastoral do encontro prioriza o relacionamento igualitário entre destinatário e emissor de mensagens, porque ambos são agentes de pastoral e sujeitos da evangelização. Levam em conta a reciprocidade e reversibilidade entre destinatário e emissor. O sonho do número grande ou até da totalidade dos destinatários, alimentado pelo mundo digital, é pago com a moeda da amizade que exige proximidade:


Só a proximidade que nos faz amigos nos permite apreciar profundamente os valores dos pobres de hoje, seus legítimos desejos e seu modo próprio de viver a fé. A opção pelos pobres deve conduzir-nos à amizade com os pobres. Dia a dia os pobres se fazem sujeitos da evangelização e da promoção humana integral: educam seus filhos na fé, vivem constante solidariedade entre parentes e vizinhos, procuram constantemente a Deus e dão vida ao peregrinar da Igreja (DAp 398).



      Os pobres representam o ponto de partida, não a totalidade dos sujeitos da pastoral, que são os batizados: “Cada um dos batizados, independentemente da própria função na Igreja e do grau de instrução da sua fé […] A nova evangelização deve implicar um novo protagonismo de cada um dos batizados” (EG 120). Quem experimentou “o amor de Deus que o salva”, é discípulo-missionário, capaz de proclamar: “Encontramos o Messias” (Jo 1, 41) (EG 120):

A melhor motivação para se decidir a comunicar o Evangelho é contemplá-lo com amor […]. Por isso, é urgente recuperar um espírito contemplativo, que nos permita redescobrir, cada dia, que somos depositários de um bem que humaniza, que ajuda a levar uma vida nova (EG 264).

         Dois braços representam a “cultura do encontro”: a prática no plural das comunidades e o anúncio na comunidade universal do mundo. Na realidade pastoral ainda não assumimos as tarefas que emergem desta situação: a vigilância ética e humanitária sobre as novas tecnologias de comunicação, o ceticismo contra todas as ofertas gratuitas feitas nas redes e, positivamente, o imperativo da diversificação da pastoral entre as ramificações da comunicação. Além das questões meramente econômicas que tratam da geração de lucros, se impõem questões político-culturais ao debate, por exemplo, a questão entre chaves de comunicação universal, que o mundo digital oferece, e a questão de comunicação contextual e cultural que emerge da oralidade.

       A roda da “conversão pastoral” deve girar em torno dos dois eixos da multiplicação universal dos destinatários e usuários, e da contextualização cultural (encarnação) da mensagem. Trata-se da interação de dois polos: de uma contextualização universal e de uma universalidade contextualizada. O preço que a pastoral pagaria pela mera universalização digitalizada seria o esfriamento das relações humanas, e, pela mera contextualização, o encolhimento numérico e o encurtamento do horizonte para níveis paroquiais fechados. Não temos a possibilidade de escolher entre um ou outro em torno dos quais se criariam grupos de partidários militantes e grupos opostos. Os místicos, como Nicolau de Cusa, nos falam da coincidência dos opostos, assumida na Evangelii gaudium do Papa Francisco. É possível:


desenvolver uma comunhão nas diferenças, que pode ser facilitada só por pessoas magnânimas que têm a coragem de ultrapassar a superfície conflitual e consideram os outros na sua dignidade mais profunda. Por isso, é necessário postular um princípio que é indispensável para construir a amizade social: a unidade é superior ao conflito. A solidariedade, entendida no seu sentido mais profundo e desafiador, torna-se assim um estilo de construção da história, um âmbito vital onde os conflitos, as tensões e os opostos podem alcançar uma unidade multifacetada que gera nova vida. Não é apostar no sincretismo ou na absorção de um no outro, mas na resolução num plano superior que conserva em si as preciosas potencialidades das polaridades em contraste (EG 228).

          A “unidade multifacetada que gera nova vida”, e “conserva em si as preciosas potencialidades das polaridades em contraste” é, desde tempos primordiais, o sonho da universalidade dos místicos. Romper os contextos sem destruí-los, e caminhar em direção do mistério da unidade trinitária de Deus – eis o caminho que prepara a recapitulação do cosmo em Cristo que é a nossa paz. “Desenvolver uma cultura do encontro numa harmonia pluriforme” (EG 220), é um caminho lento e árduo. Nesta perspectiva, por ser desinteressada em poder e lucro, a comunicação universal que acolhe as diferenças num diálogo produtivo, é possível, além e aquém do mundo digitalizado. Os místicos diriam: desenterrar Deus que, como Verbo, nos faz participar de sua ressurreição na vida cotidiana.

          3.2. Dimensão profética

          Por acompanhar, assumir e contestar as grandes tendências da época, a evangelização radicada na cultura do encontro se inscreve num horizonte místico em busca da unidade na diversidade, e profético. As “grandes tendências” não levam em conta os destinatários como sujeitos nem os pobres e as pessoas que vivem nas margens sociais e culturais da época. Os últimos documentos do magistério latino-americano e universal nos confirmaram nessa fé: “O encontro com Jesus Cristo através dos pobres é uma dimensão constitutiva de nossa fé em Jesus Cristo. […]. A mesma união a Jesus Cristo é a que nos faz amigos dos pobres e solidários com seu destino” (DAp 257).

      A comunicação com esses nossos amigos é uma meta permanente. Ela não flui por causa de barreiras estruturais e pessoais. A real comunicação aponta sempre para rupturas sistêmicas e conversão pessoal. Numa sociedade de classe, a comunicação é sistemicamente travada por grandes desigualdades sociais. Mas, mesmo imaginando estruturas que superaram as desigualdades, a comunicação está cheia de ruídos por causa de relações inautênticas de indivíduos alienados. Ruptura e conversão têm dimensões religiosas, sociais, políticas, éticas, econômicas e escatológicas.

 

 A dimensão profética opõe-se à comunicação universal digitalizada como comunicação descontextualizada e luta contra a integração aos interesses econômicos prometidos pelo mundo digitalizado que é sistêmico. Ao mesmo tempo luta pela presença micro estrutural e manutenção do calor humano nas situações existenciais da vida humana mutilada por ser precedida pelo imperativo da opção pelos pobres.

        A pastoral profética é, segundo o Documento de Aparecida, uma função de sua eclesialidade: a Igreja “é chamada a ser sacramento de amor, solidariedade e justiça” (DAp 396), e está “convocada a ser `advogada da justiça e defensora dos pobres´” (DAp 395, cf. DAp 508). “Em sua missão de advogada da justiça e dos pobres, a Igreja se faz solidária” (DAp 533, cf. DAp 508), assume “a atitude de compaixão e cuidado do Pai, que se manifesta na ação libertadora de Jesus” (DAp 532).


       O anúncio da Boa-Nova aos pobres e sua defesa caracterizam a dimensão pneumatológica da pastoral. O Espírito Santo, que invocamos como Paráclito, é advogado e defensor dos pobres e dos outros. “No irmão, está o prolongamento permanente da encarnação para cada um de nós” (179). Essa verdade lapidar é reforçada com frases como: “absoluta prioridade”, “dimensão constitutiva da missão da Igreja”, “expressão irrenunciável”, “brota inevitavelmente dessa natureza [missionária da Igreja] a caridade efetiva”, “compaixão que compreende, assiste e promove” (179). “O prolongamento permanente da Encarnação” (179, cf. GS 32) tem nomes propositivos: justiça, caridade, solidariedade. “A palavra «solidariedade» significa muito mais do que alguns atos esporádicos de generosidade; supõe a criação de uma nova mentalidade que pense em termos de comunidade” (188). As comunidades são lugares de luta pela “prioridade da vida de todos sobre a apropriação dos bens por parte de alguns” (188). Tudo isso exige de nós uma profunda “conversão pastoral” (DAp 366) para louvar a Deus na humanidade ferida. Precisamos refletir estratégias de um novo paradigma da Igreja universal em contextos, cuja meta e obstáculo a Exortação Evangelii gaudium enfatiza:

Neste tempo em que as redes e demais instrumentos da comunicação humana alcançaram progressos inauditos, sentimos o desafio de descobrir e transmitir a «mística» de viver juntos, misturar-nos, encontrar-nos, dar o braço, apoiar-nos, participar nesta maré um pouco caótica que pode transformar-se numa verdadeira experiência de fraternidade, numa caravana solidária, numa peregrinação sagrada. Assim, as maiores possibilidades de comunicação traduzir-se-ão em novas oportunidades de encontro e solidariedade entre todos (EG 87).

        
  “A mística de viver juntos, misturar-nos, encontrar-nos” não é uma mística pré-moderna e tribal de um comunitarismo historicamente caducado, mas uma construção social que permite a convivência pacífica da humanidade em sua diversidade. A “maré um pouco caótica” foi castigada por ventos diferentes que se opõem a essa mística. O termo “comunidade” aponta para realidades sociais contextuais nem sempre intercomunicáveis. “Comunidade” pode apontar para uma comunidade na qual prevalecem códigos fechados ou abertos, para uma comunidade agrária e oral, uma comunidade científica, indígena e indigenista, pré-moderna, pré e pós-industrial. A invenção da escrita, do livro e do computador podem perpassar todas elas.

          A invenção da tipografia nos trouxe não só a Bíblia de Lutero, mas também a agenda com seu impacto sobre nosso tempo disponível. A rigor, a digitalização consome mais tempo que libera para a evangelização no interior de uma expressão da cultura do encontro. Redimensionar os imperativos universais da digitalização, que nos abrem horizontes fascinantes, significa não permitir que se tornem dono do nosso tempo e não permitir a cristalização de processos (cf. EG 223). Quem são as pessoas e os meios que contribuem para a construção de comunidades através de processos escondidos e abrem mão de resultados visíveis e imediatos sem o objetivo essencial de construir a plenitude humana? A Evangelii gaudium nos dá uma resposta com um critério enunciado por Romano Guardini: "«O único padrão para avaliar justamente uma época é perguntar-se até que ponto, nela, se desenvolve e alcança uma autêntica razão de ser a plenitude da existência humana, de acordo com o caráter peculiar e as possibilidades da dita época»" (EG 224).

    Se a palavra “encontro” é a palavra-chave que se tornou conceito pastoral como “cultura do encontro”, então queremos saber, “como projetar, numa cultura que privilegie o diálogo como forma de encontro, a busca de consenso e de acordos mas sem a separar da preocupação por uma sociedade justa, capaz de memória e sem exclusões. […] Trata-se de um acordo para viver juntos, de um pacto social e cultural (EG 239). No início dessa cultura do encontro está o encontro dos encontros com Deus-Pai e com aquela pessoa que Ele nos enviou por amor, seu filho Jesus Cristo: “A comunidade missionária experimenta que o Senhor tomou a iniciativa, precedeu-a no amor (cf. 1Jo 4,10)” (EG 24).

       A busca e descoberta do amor de Deus no lugar do encontro faz o “assédio espiritual” desnecessário: “As maiores possibilidades de comunicação traduzir-se-ão em novas oportunidades de encontro e solidariedade entre todos. […] Fechar-se em si mesmo é provar o veneno amargo da imanência, e a humanidade perderá com cada opção egoísta que fizermos” (EG 87). A paciência de escutar, de ir ao encontro e servir é muito mais importante do que a fala normativa e imperativa daquele que quer que o outro assuma suas convicções.

   Na linguagem da geração facebook, nossas comunidades hoje são communities em redes, desafiadas pela urgência da caridade de Cristo, a velocidade de aparatos e pela lentidão do encontra face à face: “Assim como alguns quiseram um Cristo puramente espiritual, sem carne nem cruz, também se pretendem relações interpessoais mediadas apenas por sofisticados aparatos, por ecrãs e sistemas que se podem acender e apagar à vontade (EG 88).

          No mundo globalizado, redes de fé, sem fronteiras, e comunidades que contextualizam amor e esperança, participação e presença, fraternidade e solidariedade tornaram-se desafios gigantes. Proximidade e presença, universalidade e urgência pastoral se articulam em sete registros:
- mobilidade (mística do caminho e ruptura sistêmica),
- pluralidade (diálogos com o diferente),
- relevância (para os pobres e os outros),
- leveza (física e estrutural),
- visibilidade (sinal que renuncia à totalidade sem abrir mão de sua missionariedade),
- simplicidade (de doutrinas e da vida),
- conectividade (proximidade universal e capacidade de articulação).

Com suas tensões internas, nos convidam


a abraçar o risco do encontro com o rosto do outro, com a sua presença física que interpela, com o seu sofrimento e suas reivindicações […]. A verdadeira fé no Filho de Deus feito carne é inseparável do dom de si mesmo, da pertença à comunidade, do serviço, da reconciliação com a carne dos outros. Na sua encarnação, o Filho de Deus convidou-nos à revolução da ternura (EG 88).