Lideranças indígenas enfrentam o governo brasileiro e fazem denúncias em fórum da ONU

Fonte da notícia:
Mobilização Nacional Indígena – Apib e
Conselho Indigenista Missionário – Cimi
(24/04/2015).

 O governo brasileiro bem que tentou esconder, mas lideranças da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) levaram ao Fórum Permanente para Questões Indígenas da Organização das Nações Unidas (ONU), na tarde desta sexta-feira, 24, em Nova York (EUA), a realidade das comunidades país afora. Lindomar Terena (na foto, de cocar), por volta das 17 horas, horário de Brasília, leu uma carta da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) dirigida à mesa diretora do Fórum (leia a carta na íntegra no sitio da Apib e do Cimi). A repercussão do pronunciamento foi tamanha, que virou debate.

A carta gerou protestos de representantes do Ministério de Relações Exteriores do Brasil, que enviou uma comensal para rebater no Plenário e passar o recibo. “O nosso pronunciamento gerou um debate de 30 minutos. O governo respondeu a carta dizendo que a realidade dos povos indígenas é difícil em todo o mundo e desafiou os demais países a apresentarem números maiores de demarcações de terras indígenas. Disse ainda que reconhece os problemas, mas que estão trabalhando para a solução. De que país essa gente estava falando eu não sei”, afirma Sônia Bone Guajajara (na foto, de touca rosa), da Apib, presente no Fórum.




 Conforme a Guajajara, a vice-presidente do Fórum, Ida Nicolaisen, disse que ficou espantada com as denúncias dos indígenas do Brasil. E surpresa. “O governo federal vende aqui fora que está tudo bem, os povos vivem em harmonia com o projeto governamental. Para o governo brasileiro foi um constrangimento, porque inclusive eles tinham acabado de lançar os jogos mundiais”, complementa Sônia. Antes do bloco da tarde, nesse que é o 14º Período de Sessões do Fórum, o governo brasileiro lançou os Jogos Mundiais Indígenas, previsto para acontecer no 2º semestre, em Palmas (TO).

“A nossa fala contradiz tudo o que eles estão mostrando. Para os participantes também ficou evidente essa manipulação. A vice-presidente afirmou com todas as letras que a situação do Brasil não pode mais uma vez ser deixada de lado, que a ONU precisa pressionar o governo a demarcar terras, melhorar a situação”, ressalta Sônia.



Demarcação


 Para Eliseu Guarani e Kaiowá (na foto, de fone) as demarcações são a pauta central dos povos indígenas no Mato Grosso do Sul e no país. “É duro viver entre o veneno da soja e as balas dos pistoleiros; entre a cerca e o asfalto, enquanto o governo diz que está tudo bem. Faz clima de festa. Um desrespeito isso”, diz.

Eliseu já andou meio mundo. Passou por vários países da Europa, América Latina, foi aos Estados Unidos outras vezes. Em seu tekoha – lugar onde se é –, o Kurusu Ambá, vive com a cabeça a prêmio. É assim que funciona as coisas para os indígenas que lutam por terra no cone sul do Mato Grosso do Sul. É assim em praticamente todo o país. “Podem me matar quando eu votar, posso nem ver as terras demarcadas, mas vamos lutar. Na ONU podemos denunciar fora do país, para mostrar a nossa realidade, o que vivemos dia a dia”, afirma. A PEC 215, as reintegrações de posse, os assassinatos e as lideranças desaparecidas foram outros pontos abordados.

De acordo com o pronunciamento da delegação do Brasil de lideranças indígenas, 18 terras indígenas estão na mesa da presidente Dilma Rousseff aguardando homologação. Já na mesa do ministro da Justiça José Eduardo Cardozo, 12 terras, sem nenhum impedimento jurídico, aguardam a publicação da Portaria Declaratória. “Então não vamos acreditar que este governo tem comprometimento conosco porque no último dia 19 de abril homologou quatro terras na Amazônia, sendo que uma foi obrigada pelas condicionantes da UHE Belo Monte”, pontua Sônia Guajajara.


O Fórum segue até a próxima sexta-feira, 31, e as exposições serão voltadas ao acesso à Justiça dos povos indígenas.


A máquina contra o maquinista: a Congregação para a Doutrina da Fé acha que deve dar ao pensamento do papa Francisco uma "estruturação teológica"


O sucessor de Pedro precisa de “estruturação teológica” e quem deve garantir essa “estruturação” é a Congregação para a Doutrina da Fé, segundo entrevista dada ao jornal La Croix, pelo Cardeal Gerhard Ludwig Müller, prefeito da referida Congregação.

A reportagem é de Gianni Valente, publicada por Vatican Insider, 21-04-2015. A tradução é de Isaque Gomes Correa e reproduzido no site da IHU, 22.04.2015.

O Pe. Benoît-Dominique de Toulouse responde as perguntas de Gianni Valente. Eis algumas perguntas e respostas da entrevista.

Fornecer uma “estrutura teológica” ao pontificado está entre as tarefas da Congregação para a Doutrina da Fé?

Antes de tudo, devemos esclarecer as palavras aqui empregadas. A Congregação na qual o Cardeal Müller desempenha o papel de prefeito é a Congregação De doctrina fidei. Segundo o Artigo 48 da Constituição Apostólica Pastor Bonus, de 26 de junho de 1988, é seu dever “promover e tutelar a doutrina sobre a fé e os costumes em todo o mundo católico”. [...]

As palavras do Cardeal Müller fazem parecer que, se um pontífice não for um “teólogo de profissão”, então o seu pontificado poderá precisar da tutela de uma classe de teólogos que trabalhem na Congregação para a Doutrina da Fé. O senhor considera plausível esta forma de definir a relação entre o magistério pontifício e a Congregação para a Doutrina da Fé?
Ainda faz sentido estabelecer uma distinção dialética implícita entre papas “teólogos” e papas “pastores”?

A distinção entre “teologia” (ou doutrina também) e “acompanhamento pastoral” é uma distinção apenas, o que não quer dizer que sejam duas coisas separadas. O acompanhamento pastoral é a doutrina posta em prática. Todas as partes da doutrina têm uma finalidade pastoral. Todos os papas são tanto doutores da fé quanto pastores da Igreja. Uma relação “dialética”, no sentido de uma dialética do tipo hegeliano de oposição, não faz nenhum sentido.

Em tese, pode o ministério do Sucessor de Pedro ser considerado teologicamente “carente”, necessitando de uma certa “estruturação teológica” por pessoas outras que não o Papa?

Com certeza, não! O Papa tem tudo o que é preciso para enunciar a fé da Igreja. A Congregação De doctrina fidei ajuda-o nas fases de preparação e implementação, mas a “crux” consiste em enunciar a fé da Igreja, e isso é exatamente o ministério pessoal e próprio do Papa. Por “estruturar”, o Cardeal Müller pode ter desejado dizer este trabalho, sobretudo o preparatório.

Na estrutura apostólica da Igreja, que se acredita estar de acordo com a vontade do próprio Deus, quem é o guardião do depositum fidei? Será o Papa com os bispos, ou a Cúria Romana com suas Congregações e órgãos, incluindo o dicastério doutrinal?

Desestruturado. Eu? Nem pensar
[O guardião] é o próprio Papa. A Cúria Romana tem um papel meramente instrumental e vicário: ela não existe nem opera por si mesma, mas dentro de sua própria dependência essencial do pontífice. Quando a Sé de Pedro está vacante, suspende-se todo o trabalho das Congregações (exceto as tarefas rotineiras).


Será que, de alguma forma, as Congregações vaticanas ou os colaboradores do Papa participam do carisma da infalibilidade que este último, em certos casos, possui?

A infalibilidade é um carisma estritamente pessoal que o Papa tem; as Congregações não a compartilham. As decisões tomadas pelas Congregações in forma communi (não de forma específica) são decisões tomadas pelas Congregações em suas funções como instrumentos vicários do Papa; a autoridade delas é real, mas não carregam a autoridade pessoal do Papa no mesmo nível das decisões aprovadas por ele de forma específica.

Certas expressões e lemas do linguajar jornalístico afirmam que, nos anos em que Wojtyla era o Papa, havia uma espécie de “diarquia”, com o Papa João Paulo II quase compartilhando o seu ministério com Joseph Ratzinger, ao confiar a este a gestão da doutrina. Seria esta uma interpretação legítima da realidade da época ou seria uma intepretação equivocada do ponto de vista da natureza e estrutura da Igreja Católica?


Do ponto de vista da natureza dogmática da Igreja, esta interpretação não é legítima. O ofício papal é estritamente pessoal. Isso não significa que um Papa não possa ser, particularmente, próximo ao prefeito de uma Congregação e, no caso específico, do prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, como foi o caso com João Paulo II e o Cardeal Ratzinger. Mas não há dúvidas de que, dogmaticamente, a responsabilidade doutrinal reside no Papa, na base de seu carisma pessoal.

Dia dos povos indígenas: Alzheimer jurídico de Três Poderes e Bancadas

O "Acampamento Terra Livre (ATL) no retrovisor



        As delegações dos povos indígenas, que acamparam três longos dias debaixo de forte chuva e sol quente na Esplanada dos Ministérios de Brasília, arrumaram suas mochilas, desmontaram lonas e barracas. Desde a saída de suas aldeias discretamente monitorados pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin), retomaram a estrada e estão voltando para suas terras que valentemente defenderam. Há alguns anos, o Acampamento Terra Livre (ATL) faz parte da Mobilização Nacional Indígena com ações concomitantes espalhadas por todo o Brasil.

        Antes de vir para Brasília, as lideranças convocadas pelas suas organizações regionais e pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), percorreram as regiões e conversaram com seus povos sobre o significado do ATL. Já preparando futuros militantes da causa indígena, trouxeram muitos jovens que pela primeira vez estiveram em Brasília. Ao lado desse foco pedagógico, o que significou, politicamente, a mobilização de 1,5 mil lideranças indígenas no ATL contra a mobilização de três bancadas do Congresso e de três Poderes constitucionais durante 365 dias ao longo do ano?

        O leitor, politicamente instruído sobre os Três Poderes, pode perguntar: “Mas, quem são essas Três Bancadas”? São as bancadas BBB, da Bíblia, do Boi e da Bala, as bancadas do fundamentalismo, do agronegócio e da liberalização da compra e do porte de armas (PL 3722/2012). Para fazer passar seus respectivos projetos pelas votações, essas bancadas fazem alianças transversais com outros setores, como aconteceu na votação da Redução da Maioridade Penal (PEC 171/93) e na preparação do Projeto de Lei (PL 4330) que pretende regulamentar a Terceirização do Trabalho.


        Face às três bancadas e aos Três Poderes, os povos indígenas vivem politicamente encurralados em uma situação de guerra civil silenciada pela mídia e sustentada pela classe dominante, pela força bruta de assassinatos no campo e pela repressão “legal” que está instruindo processos que criminalizam as lideranças indígenas e as colocam nas cadeias. A coordenadora da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão (CCR), Deborah Duprat, fez uma leitura correta do panorama político que vivemos hoje: “Avalio que estamos vivendo um dos piores momentos pós-Constituição de 1988 no que diz respeito a direitos territoriais indígenas. Isso porque, pela primeira vez, os três Poderes, por ação ou omissão, passam a percepção de que há excesso nas demarcações de terras indígenas e de que é preciso adotar providências no sentido de assegurar direitos de propriedade de terceiros” (Porantim, Jan/Fev 2015, p. 4).


        Os discursos das lideranças indígenas, suas faixas de protesto e documentos protocolados durante o Acampamento Terra Livre (ATL 2015) mostravam os conflitos estruturalmente conectados à hostilidade dos Três Poderes, escondidos atrás de siglas misteriosas como PEC 215 (referente ao Poder Legislativo), Portaria 303 (referente ao Poder Executivo), anulação de “Portaria Declaratória” e “Marco Temporal” (ambos de iniciativa do Poder Judiciário).

        A PEC 215 é a Proposta de Emenda Constitucional, que transfere do Poder Executivo para o Legislativo, portanto, do Governo Federal para o Congresso, a atribuição de oficializar Terras Indígenas em detrimento dos artigos 231 e 232 da Constituição que regulamenta as demarcações de terras indígenas. Por que esta fúria dos índios contra a PEC 215? No Congresso hospedam-se os interesses regionais de prefeitos, grandes proprietários de terra e do agronegócio, das mineradoras e das madeireiras que, com suas contribuições, subvencionam as campanhas eleitorais de vereadores, deputados e senadores, e procuram impedir a demarcação das terras indígenas.

        Sabiamente, a Constituição de 1988 resistiu contra as tentativas de regionalizar a questão indígena, contando com a ação política mais distante da cooptação regional e, portanto, mais isenta do Governo Federal face às reais necessidades dos povos indígenas. Infelizmente, nesse “olhar mais distante” do Poder Executivo está embutido um fator subjetivo e partidário deste ou daquele governante. A presidente Dilma, que já nos seus discursos de posse do segundo mandato não mencionou os povos indígenas com uma só palavra, está descumprindo a sua promessa de ser presidente de todos os brasileiros. Embora a PEC 215 represente uma iniciativa do Poder Legislativo, o trato político que foi dado à questão pelo Poder Executivo foi o da “batata quente” em detrimento da Constituição Federal.

        Para o segundo dia do ATL foi previsto uma vigília noite a dentro diante do Supremo Tribunal Federal (STF), fortemente cercado por policiais. Mesmo sob chuvas torrenciais, as lideranças cantaram e dançaram num ritual com a força que teria feito os muros de Jericó caírem.

      

Quais foram as reivindicações ao STF? A 2ª Turma do Supremo anulou entre setembro e dezembro de 2014 duas Portarias do Ministério da Justiça e um Decreto Presidencial que reconheceram três terras indígenas legalmente aptas para a demarcação e devolução definitiva aos índios. Os ministros do Supremo achavam o contrário, interpretando que as terras Guyraroká (MS), do povo Guarani Kaiowa, Porquinhos (MA), dos Canela Apanyekrá e Limão Verde (MS), dos Terena, não seriam terras indígenas. A base legal invocada pelo STF foi o chamado “Marco Temporal”.

        O “Marco Temporal” é um expediente jurídico introduzido por ocasião da demarcação da Terra Indígena (TI) Raposa Serra do Sol de Roraima, juridicamente concluída em 2013. Esse “Marco Temporal” foi assumido no decorrer dos debates anteriores entre os Ministros do STF no julgamento da Petição 3388/RR, de 2009. Segundo o então ministro Ayres Britto vale somente para a TI Raposa Serra do Sol, e diz o seguinte: terras tradicionalmente ocupadas pelos índios são aquelas que eles habitavam em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Brasileira, devendo, ainda, haver efetiva relação dos índios com a terra.



        “O marco temporal de ocupação” não causou maiores problemas enquanto era respeitada a intenção original do julgador de não lhe atribuir “efeito vinculante” às demais terras indígenas e enquanto vigorou o entendimento sobre “o marco da tradicionalidade da ocupação”. De acordo com a decisão do STF, “a tradicionalidade da posse nativa, no entanto, não se perde onde, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, a reocupação apenas não ocorreu por efeito de renitente esbulho por parte de não-índios”.

        Esse acordo legal foi rompido pelas decisões da 2ª Turma do STF ao tratar o “Marco Temporal” como precedente jurídico para outras situações e dando um caráter altamente restritivo ao “renitente esbulho” dos povos indígenas. A Advocacia Geral da União (AGU), braço jurídico do Poder Executivo da Presidência, que por meio da Portaria 303/2012 estabeleceu a vinculação das já mencionadas “Condicionantes” a todas as terras indígenas do Brasil, sincronizou os equívocos jurídicos entre STF e AGU.


        A invocação do “Marco Temporal” como precedente e a classificação restritiva do “esbulho” não considera suficientemente que os povos indígenas viveram até a promulgação da Constituição de 1988 em regime de Tutela, que não lhes permitiu reivindicar seus direitos territoriais ou travar disputas judiciais, nem voltar às suas terras, das quais foram expulsos pelas diferentes ondas de colonização. Na questão da demarcação das terras indígenas, o governo Dilma está entrando em águas turvas da amnésia histórica, mostrando sintomas de um Alzheimer jurídico avançado que trata situações de fato como situações de jure.

Paulo Suess, 19 de abril 2015


No dia 9 de abril, o “Congresso Nacional da Vida Consagrada” envia a Ir. Marlene Avanzi para Haiti



Um dos momentos altos do “Congresso Nacional da Vida Consagrada”, Aparecida, 9 de abril. Segundo a programação: “18h – Celebração Eucarística – Envio de Ir. Marlene Avanzi para Haiti por D. Sérgio Braschi, Presidente da Comissão da Ação Missionária da CNBB”. 



O que segue, escapa da programação formal. Antes do Ofertório, aproxima-se um pequeno cortejo do altar: a Ir. Marlene, baixinha, não tão jovem assim, acompanhada por irmãs de sua comunidade e a Superiora Geral de sua Congregação das Irmãs de São Francisco da Providência de Deus: Está entregue o presente da Congregação à Igreja do Brasil e do Haiti. 


A Superiora diz algumas palavras sobre a vida da Ir. Marlene, que logo depois de sua consagração foi enviada ao Maranhão. No interior daquele Estado viu tanto abandono do povo, tantas doenças, que pediu à Congregação poder estudar medicina, para ajudar melhor os que o Estado tinha esquecido. Estudou medicina, especializou-se em cirurgia, voltou para o Norte, Amazônia, Rondônia, Guajará-Mirim. Ficou responsável por hospitais, leprosários, ambulatórios e tornou-se a mão estendida de Deus para muita gente. 


Agora, já na idade da aposentadoria, se dispôs a atender um chamado de Nossa Senhora Aparecida para levar um bilhete para Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, padroeira do Haiti, onde estava escrito: ESPERANÇA. Dom Sérgio toma um violão e canta. Mesmo quem já ouviu Sérgio cantar noite adentro, nunca o ouviu cantar tão bonito como naquele momento. 

Depois, a Assembleia estende as mãos para participar da benção do envio e canta: Vai, vai missionária do Senhor... Lágrimas reprimidas no fundo do coração. “Igreja em saída”. O altar parece vazio. Mas o altar é o mundo.

Habermas: Minha crítica a razão laicista


Razão laicista e fundamentalismo religioso: 
farinha do mesmo saco


A minha crítica à razão laicista. 


Artigo de Jürgen Habermas


O universalismo do Iluminismo político não deve estar em contradição com as sensibilidades particulares de um multiculturalismo bem entendido. Em uma ideia de sociedade inclusivista, a igualdade política e a diferença cultural podem se harmonizar entre si.

A opinião é do filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas, em artigo foi publicado no jornal La Repubblica, 27-03-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto, no newsletter da IHU.

Eis o texto.

Para poder se definir como pós-secular, uma sociedade deve primeiro ter sido secular. Portanto, a expressão só pode se referir às sociedades europeias ou a nações como Canadá, Austrália, Nova Zelândia, cujos cidadãos viram continuamente (às vezes, depois da Segunda Guerra Mundial, até mesmo drasticamente) afrouxar os seus vínculos religiosos. Nesses países, a consciência de viver em uma sociedade secularizada se difundiu de forma mais ou menos geral.

Por isso, podemos definir a consciência pública europeia como "pós-secular" no sentido de que, ao menos por enquanto, ela aceita a persistência de comunidades religiosas dentro de um horizonte cada vez mais secularizado.

Até agora, adotei a perspectiva externa do observador sociológico. Mas, se adotarmos a perspectiva do participante, então a pergunta se torna outra, de tipo normativo. Como devemos nos entender como membros de uma sociedade pós-secular?

Porém, antes de abordar o núcleo filosófico, deixem-me desenhar mais claramente o ponto de partida aceito por todos: o princípio da separação entre Igreja e Estado. O Estado constitucional moderno só pode garantir a liberdade religiosa contanto que os seus cidadãos deixem de se fechar como uma ostra dentro dos horizontes integralistas das suas respectivas comunidades religiosas.

As subculturas devem deixar livres os seus seguidores para se reconhecerem reciprocamente na sociedade civil como cidadãos do Estado. Essa nova constelação – entre "Estado democrático", "sociedade civil" e "autonomia das subculturas" – torna-se, agora, a chave para entender as duas "razões" que hoje, em vez de se colocarem de acordo, estão irracionalmente fazendo uma guerra.

De fato, o universalismo do Iluminismo político não deveria estar em contradição com as sensibilidades particulares de um multiculturalismo bem entendido.

Mas o que eu gostaria de ressaltar, nesse contexto, é uma ideia de sociedade inclusivista em que possam se harmonizar entre si a igualdade política e a diferença cultural. Exceto que os partidos em luta não veem, justamente, essa complementaridade.

O partido dos multiculturalistas, ao proteger as identidades coletivas, acusa a sua contrapartida de "fundamentalismo iluminista", ao passo que os secularistas insistem em integrar as minorias na cultura política já existente, acusando a sua contrapartida de "culturalismo anti-iluminista".

Os chamados multiculturalistas gostariam de desenvolver e de diferenciar o sistema jurídico para adequá-lo às exigências de "igualdade de tratamento" propostas pelas minorias religiosas. Eles denunciam o risco da assimilação forçada e do desenraizamento.


No lado oposto, os secularistas lutam por uma inclusão colorblind de todos os cidadãos, independentemente da sua origem cultural e do seu pertencimento religioso. A partir desta perspectiva laicista, a religião deveria permanecer como uma questão exclusivamente privada. A versão radical do multiculturalismo muitas vezes se apoia na convicção – totalmente equivocada – de que visões de mundo, "discursos" e sistemas teóricos são incomensuráveis entre si.

Nessa concepção "contextualista", as várias culturas se apresentam como universos semanticamente fechados, acompanhados por critérios de racionalidade/verdade incomparáveis entre si. Cada cultura seria uma totalidade semanticamente selada, à qual é bloqueado todo entendimento discursivo com as outras.

Com base nessas premissas, toda pretensão universalista de verdade – por exemplo, aquela proposta pela democracia e pelos direitos humanos – é apenas uma máscara ideológica que serve para esconder o imperialismo da cultura dominante.

Deve-se dizer, porém, que, mesmo no zelo excessivo dos guardiões da ortodoxia iluminista, escondem-se premissas filosóficas bastante discutíveis. Na sua perspectiva antirreligiosa, a religião deveria se retirar completamente da esfera pública e se restringir à esfera privada, pois seria uma figura historicamente superada pelo espírito.

A tese do laicismo radical é uma tese filosófica, completamente independente do fato empírico de que as religiões podem oferecer contribuições importantes para a formação política da opinião e da vontade. Do ponto de vista dos secularistas, os conteúdos do pensamento religioso, em todo o caso, são cientificamente desacreditados e inadmissíveis.

Aqui, eu gostaria de fazer uma distinção entre laico e laicista, entre secular e secularista. A pessoa laica, ou não crente, se comporta com agnóstica indiferença em relação às pretensões religiosas de validade. Os laicistas, ao contrário, assumem uma atitude polêmica em relação àquelas doutrinas religiosas que (embora cientificamente infundadas) têm grande relevância na opinião pública.

Hoje, o secularismo se apoia frequentemente em um naturalismo "hard", justificado em termos cientificistas. Pergunto-me se – para os fins da autocompreensão normativa de uma sociedade pós-secular – uma mentalidade laicista hipoteticamente generalizada não acabaria sendo igualmente pouco desejável em comparação com um desvio fundamentalista dos crentes.

Na realidade, o processo de aprendizagem deveria ser prescrito não só para o tradicionalismo religioso, mas também para a sua contrapartida secularizada. Certamente, a autoridade estatal, à qual são reservados os instrumentos da violência legítima, nunca deverá se deixar arrastar nas lutas religiosas, para não correr o risco de se tornar o órgão executivo de uma maioria religiosa que amordaça a oposição.

Todas as normas do Estado constitucional devem ser formuladas e justificadas em uma linguagem acessível a todos. Mas a neutralidade ideológica do Estado não proíbe que se admitam conteúdos religiosos na esfera pública política.

Duas ordens de motivos apoiam essa abertura liberal. Em primeiro lugar, mesmo aqueles que não sabem ou não querem dividir os seus vocabulários e as suas convicções em uma componente profana e em uma religiosa devem poder participar na sua linguagem religiosa para a formação da vontade política.

Em segundo lugar, é preciso que o Estado não reduza preventivamente a complexidade polifônica das diversas vozes públicas. Se, em relação aos seus concidadãos religiosos, as pessoas laicas tivessem que pensar que não podem levá-los a sério – como autênticos contemporâneos da modernidade – por causa da sua atitude religiosa, então se deslizaria de volta para o plano do mero modus vivendi e se perderia aquela "base do reconhecimento" que é constitutiva da cidadania.

Portanto, as pessoas laicas não devem excluir a priori o fato de que podem descobrir conteúdos semânticos dentro das contribuições religiosas; às vezes, eles podem até encontrar aí ideias já intuídas por eles mesmos e, até aquele momento, não totalmente explicitadas.


Tais conteúdos podem ser utilmente traduzidos no plano da argumentação pública. Na hipótese mais feliz, ambas as partes deverão se comprometer, cada uma do seu próprio ponto de vista, para interpretar a relação fé/saber de tal maneira que promova uma convivência reflexivamente iluminada.